Regras e revoltas são os carris por onde deslizamos sem esforço. Fora do caminho há uma vasta ignorância a que se chama nada. Se ouvires chamar não olhes, se vires alguma coisa não escutes, dirão que estás maluca e apertarão ainda mais as regras e as palas. É o medo do paraíso. O medo da morte. Junta-te à multidão e estarás em segurança, lá fora há o perigo de milagres. Sabemos criar infernos muito agradáveis, confortáveis, belos. A tua existência nem imaginas como será longa se permaneceres dentro das normas. Vê como é bom, tão bom, aqui connosco. Tão bom que não podemos permitir que ninguém escape, não vá dar-se o caso de nos vir depois contaminar com sabe-se lá que venenos lá de fora. Revolta-te cá dentro, está tudo previsto. Há drogas, há armas, há sexo, há barulho, que preferes? Neste grande parque de diversões tens direitos, reclama-os. Impõe-te. Quem sabe... podes vir a ser um dos grandes. Queres poder? Junta-te aos que lutam por um mundo melhor. Vem. Ou queres ser bela? Olha quanta maquilhagem aqui. Podes ser diferente todos os dias, cada vez mais jovem, mais sedutora. Há tudo aqui. Tudo para todos. Escolhe a tua carreira.
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Sim, tudo isto termina algures. Há fronteiras. Estão bem guardadas. Não, não podes sair. Porque quererias sair? Que imaginas que está para lá dos muros? Não, não há nada. E assim alguns que ainda conseguem vagabundear espreitam às vezes por quase invisíveis frinchas para o paraíso, esse paraíso tão temido. Espreitam escondidos, com medo de ser apanhados e vencidos e o que vêem calam. Outros voam em sonhos e escrevem poemas que são benignamente tolerados porque, enfim, desde que aqui permaneçam tudo o que julgam ter visto é apenas incrível. Fantasias, disparates, falta de realismo. O realismo está cá dentro. Chamem-lhe embora inferno sabemos que é real. Estamos cá, conhecemos tudo muito bem, sobretudo o centro das coisas. A marginalidade é isso mesmo: o pior do inferno. Vem para dentro. Para dentro.
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Metáforas, literatura, quanta quiseres. Embriaga-te, isso passa. Emboneca-te para seres respeitada. Come o que deves para seres saudável. Diz o que deves para chegar ao poder. Mantém-te firme e um dia tudo isto será teu, serão tuas as regras, poderás fazer o que quiseres se ao menos souberes manter-te dentro das normas. Não é nada difícil, difícil é sair delas, para que hás-de complicar a tua vida? Olha que bem que se está aqui, é o palácio. Mesmo que sejas a última das criadas não é muito melhor viver no palácio? Oh, sim. Há música e danças e nunca estás sozinha.
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Porque és teimosa? Porque não obedeces? Não sabes. Quem te dera ser amada! Tu tentas, tu esforças-te mas não vale de nada, nunca alcanças o paraíso, é sempre um inferno por mais que tentes. Destino? O que é isso? O destino és tu que o fazes. Olha a Maria, olha a Fernanda, olha a Isabel, olha a Lúcia, se fores como elas serás feliz. E tu olhas, imitas, queres, acreditas. Sim, a culpa é tua. Qual inferno? És masoquista?
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É melhor, portanto, que não te queixes. Fica calada, se ninguém suspeitar que vives no inferno o inferno é um pouco mais suportável para ti e para os outros. Talvez seja apenas isso. Talvez todos, todos se calem. Simples, não é? Não, porque quando te calas há ainda algo em ti que silenciosamente grita e incomoda toda a gente. Sempre e sobretudo os que te são mais próximos, os que amas.
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Farta de ser princesa resolveu antecipar um pouco os cinquenta anos e tornar-se rainha. Pronto. Senhora de si montou o pássaro sagrado e abandonou a cidade, o reino, o domínio privado onde sempre tinha vivido. Adeus. Como é vasta a liberdade. Não tem anos nem dias, nem tristezas nem folias. O pássaro sagrado sobrevoou desertos e pântanos, mares e montanhas, tudo era belo e estranho ao mesmo tempo, mas sobretudo imenso. Ilimitado. Dentro das penas não tinha frio nem calor, estava perfeitamente bem, tão bem que adormeceu.
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Ele era demasiado jovem, demasiado filho e irmão, demasiado querido para lhe pertencer. Não importa, basta desejar para ser feliz, concretizar um desejo é torná-lo duro. Suavemente os sonhos confortam, para que trazê-los para a realidade? Ele era, portanto, perfeito. Nessa beleza e perfeição ilimitada estava toda a alegria, toda a suave felicidade para que a levava a ave sagrada. Estavam já demasiado longe para que aquele pequeno tudo onde sempre vivera pudesse ser visível. Podia finalmente esquecer tudo, esse pequeno sonho cheio de medo. Adeus.
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Ah o sorriso, o sorriso dele, o olhar dele pousado nela quando sorria, ah... sim, há felicidade. Mesmo que tenhas medo, mesmo que fujas ou finjas, há paraíso. O sorriso dele, o olhar, o corpo, as mãos, a atenção e algo mais que se chama juventude e inocência. Tudo lhe pertencia a ele e nele ela encontrava tudo. Sentados no mesmo banco de jardim com todo o horizonte em frente numa manhã roubada ao tempo. Eis, bem vês, o paraíso. Nenhum perigo, êxtase.
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Quando chegou ao céu procurou um abrigo. Ele riu-se. De que há que abrigares-te? Tudo aqui é felicidade. Ela também se riu. Não há nada a temer, nenhuma palavra fere, nenhum olhar acusa, nenhuma acção te recusa. Estás no reino dos teus desejos e és a rainha. É difícil acreditar? Não, não é difícil, pelo contrário, é tão fácil que... ela riu-se, parece mentira.
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Se eu voltasse... Se tu voltasses? Se eu voltasse... bem, isto teria sido uma ilusão... não é? Não. Tens vivido uma ilusão que te matou. Não há regresso. É o paraíso ou... Ou? Ou o que tu quiseres. Ele ficou triste. Oh não, não, não! Não fiques triste, não! Quero ser feliz contigo. Quero, quero, quero! Como poderia querer outra coisa?
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Sim, como poderia querer outra coisa que ser abençoada por ele? Como poderia querer outra coisa que ouvi-lo cantar-lhe aos ouvidos como era bela e como era amável e como era deliciosa e como era gentil e como, oh como, o fazia feliz! Desmaiar-lhe nos braços e acordar nos seus braços e vê-lo sorrir-lhe! Oh, era inacreditável, demasiado, demasiado bom para ser verdade... tenho medo... oh! Assim que na sua alma se insinuava, por pequena que fosse, a dor, logo ele sofria... Não meu amor... Não! Oh, era preciso beijá-lo, beijá-lo muito, desculpa, não peças desculpa, beijá-lo para que ambos fossem outra vez felizes.
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Tu, só tu, meu belo e jovem amor, tu, só tu, minha bela e jovem amada... para onde fora toda a idade, toda a recordação, toda a amargura? Procurá-la-ia em vão, ainda que tivesse vontade de procurar... Riu-se, oh, meu bem amado, encosta a tua cabeça no meu peito, deixa-me abraçar-te. Tu és, eu vivo do teu sorriso, da tua alegria. Como podes? Como podes amar-me? Porque não poderia!? Bem...
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Não digas nada. Que importa agora aquilo de que nem te lembras? Oh, sim... Vejamos, há por aqui muitos motivos de alegria. Banharmo-nos toda a manhã, brincar com as crianças, vaguear com a lua em noites cálidas, subir às árvores. Sim, tudo isso é belo mas muito mais belo é desmaiar nos teus braços, no teu sorriso, na tua doce, doce companhia. Porque foi que não estiveste sempre comigo? Oh, porque invoco sombras sobre o teu rosto? Desculpa, desculpa, não peças desculpa! Estive sempre contigo mas não querias ver-me... Eu? Não queria? Não... não querias. Agora não te lembras, como então não te lembravas. Abraço-te com tanta força, meu belo amigo, como, como foi que te esqueci? Porquê? Não, não acredito, não pode ter sido assim. Basta uma palavra tua e tudo é alegria, tudo é felicidade, como poderia esquecer-te?
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Oh, é uma estranha cidade aquela onde viveste. Ah, sim... é. Foi. Era. Porque é que fui para lá? Se eu soubera... Não, não enrugues a tua fronte, não penses nisso. Estou aqui agora, estás aqui agora. Sabes, sorriso, oh, o teu sorriso! Nunca estivemos separados. Não? Não, eu estive sempre contigo. Oh! Como respirarias se te não desse alento? Oh, meu amigo! Oh, minha amada! Tu és tão bonito! E tu és-me tão cara!
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Pensar que não acreditava!
2 comentários:
Que belo texto, Almariada! Impossível começar e não ir até ao fim da leitura. Beijinhos.Um sábado abençoado.
oh, Nivaldete, muito obrigada :)
Deus te abençoe!
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