"Aconteceu a esse grande poeta persa a quem chamamos Rumi e que, expulso pelas invasões mongóis, passou grande parte da sua vida na Turquia, em Konya, um encontro extraordinário com outro poeta mais velho que ele, Chams de Tabriz.
Dois homens muito diferentes, quase opostos. Rumi apresentava-se como uma espécie de académico, de professor e comentador oficial, rico, considerado, rodeado de discípulos (entre os quais por vezes se encontrava o próprio sultão).
Chams, pelo contrário, era um homem pobre, errante, inflamado, imprevisível.
Quando viu Rumi pela primeira vez, estava este absorto na leitura de um poema que parecia apreciar e estudar com paixão.
-Que fazes tu? O que vem a ser isto? - perguntou Chams.
-Nada que tu entendas - respondeu-lhe Rumi.
Chams agarrou o poema e atirou-o para a lareira.
-Que fizeste? - exclamou Rumi. - Que vem a ser isto?
-Nada que tu entendas - respondeu-lhe Chams."
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Jean-Claude Carrière, Nova Tertúlia de Mentirosos, p. 180-181, Teorema, Lisboa, 2009
4 comentários:
um jogo de linguagem altamente criativo e que traz o que está além da razão. Lembrou-me o que contam de Sócrates. Um mensageiro oficial veio a ele:
-Mestre, cumpro o difícil dever de comunicar-te que... que vais morrer!
-Tu também!
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um abraço!
Boa noite Nivaldete,
esta história aqui está muito racionalizada, costuma ser contada acrescentando que o poema não se queimou...
ou que, deitado à água, não se molhou...
este encontro de Rumi e Shams e fundamental na tradição Sufi porque foi com Shams que Rumi aprendeu o que é o amor
e os poemas de Rumi sobre o amor são... ...!
vou deixar um exemplo:
"Os amantes não se encontram finalmente nalgum lugar. Estão sempre um no outro."
a aproximação a Sócrates é possível de outra maneira mas não como "jogo de linguagem"... :)
porque é precisamente por ser "jogo de linguagem" que Shams queima o poema... :)
o que Shams ensinou a Rumi foi a experiência da verdade...
e Rumi escreveu:
"Se não houvesse ouro verdadeiro também não haveria ouro falso."
Obrigada mais uma vez pelo teu interesse e atenção que me estimulam a comentar o post original!
(((abraços)))
é, e até parece contraditório inserir Sócrates aqui, quando ele é tido como fundador da dialética. Nietzsche, em Origem da Tragédia, diz até que ele acentuou a decadência da cultura grega, justamente por fazer a juventude se apartar da dimensão dionisíaca da vida e cultivar apenas a via do apolíneo. Mas quis referir-me ao 'susto', ao gesto inesperado, descondicionado, 'quântico'. Talvez tivesse sido melhor repetir a historinha contada por Osho: um discípulo chega ao mestre e confessa seu grande desejo de meditar; pede que ele lhe ensine. O mestre então o empurra com força, ele cai; o mestre acha pouco e quase o mata... Depois pergunta:
-Entendeste?...
Resta para nós 'entender' o que é necessário para se atingir o estado meditativo. Não perguntar? Ter uma experiência radicalmente descondicionada, inesperada...?
Mas foi bom gerar essa 'inadequação', essa inequação...
Um abraço!
Sim, querida Nivaldete, coisas que não se entendem... :)
um grande, grande (((abraço)))
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