Vladimir Kush

Vladimir KUSH, Ripples on the Ocean, (Ondulações no Oceano)

Rumi

A vela do navio do ser humano é a fé.
Quando há uma vela, o vento pode levá-lo
A um lugar após outro de poder e maravilha.
Sem vela, todas as palavras são ventos.

Jalāl-ad-Dīn Muhammad RUMI




terça-feira, 30 de março de 2021

antenascida

metamorfosear-se-á, sabe-lo bem

mas não em quê ou em quem

há-de vir a ser antenascida

alma sem nome, atrevida

quarta-feira, 24 de março de 2021

Dos delfins e dos amores deles com as delfinas

Agora, saibamos dos delfins e dos amores deles com as delfinas.

Nascem nas ondas estes simpáticos brutos. Gostam infinitamente de música e são muitíssimo amoráveis com os homens. Do teor como eles amam, ninguém o dizia melhor que o padre Bernardino, e seria inveja da minha parte furtar ao leitor o regalo desta descrição: «Os amores destes insignes marítimos viventes, decantados em muitos clarins de fama, têm claros exemplos na história. Arde seu afecto nas águas, conservando-se o seu coração abrasado no líquido elemento, e na mesma jurisdição do maior inimigo do fogo; mas como afectos ardentes dificultosamente entram nos corações, obstando a contradição nos olhos, na idade florente da puerícia, são os indivíduos humanos de mais agradável aspecto, ordinários objectos das suas inclinações.»

Isto é bonito; mas custa a perceber. Era o caso do padre, puxado algum tanto ao lirísmo teutónico, dizer com Petrarca:

Intendemi chi púo che m'intend'io.

Refere-nos a história dum delfim chamado Simão, o qual amava um lindo menino, e andava com ele às cavaleiras de praia em praia, até que, morrendo o menino, o delfim «faleceu de amores depois de uma vida toda de afectos!» Que delfim Simão! Faz chorar a gente com o seu falecimento de amores!

Outro delfim, que por nome não perca, praticava familiarmente com os soldados do procônsul de África Flaviano. Este romano deu-lhe na veneta untar de certos unguentos o delfim, os quais tiraram os sentidos ao amável bicho. «Despertado do letargo, diz o lente de Coimbra em 1743, envergonhou-se de sorte que se ausentou por muito tempo para o profundo do mar.»

Que pudor tinha o peixe! Envergonhou-se de desmaiar! Parece que a vergonha já naquele tempo se tinha feito aquática!

Passados tempos, voltou o delfim desenvergonhado, e «continuou as suas antigas afectuosas expressões.»

Outro delfim, apaixonado e não correspondido de um menino de singular beleza, deu consigo moribundo numa praia, à vista do ingrato amado e expirou, dando «eterna fama às mesmas praias, com mais extremosa fineza do que a celebrada ama de Eneias às de Caeta».

Se estes peixes morrem assim de amores da gente qual não será a ternura do seu afecto às suas delfinas? Como nem todos são Simões, algum haverá que possa chamar-se Romeu, outro Paulo, outro Werther, analogias deduzidas das suas meiguices e choradeiras. Aquilo é que há-de ser amarem-se idealmente, lá onde o pudor é do feitio que vimos! O tempo não vai senão para eles. Os peixes a quererem-se como os humanos já não se querem; e nós, humanos e cristãos, a amarmo-nos, pouco mais ou menos como carapaus e tainhas! O reviramento é completo!

Camilo Castelo Branco,


Cousas leves e pesadas
, p. 112-114, Parceria A. M. Pereira, 1971

segunda-feira, 22 de março de 2021

Fernando Pessoa, The Island

 THE ISLAND

Weep, violin and viol,

        Low flute and fine bassoon.

Lo, an enchanted isle

        Moon‑bound beneath the moon!

My dream‑feet rustle through it

        Chequered by shade and beam.

Oh, could my soul but woo it

        From being but a dream!

Violin, viol and flute.

        Lo, the isle hangs in air!

Through it I wander, mute

        With too much loss of care.

And the air where't doth float

        No air's, but light of moon.

Its paths are known to each note

        Of viol and bassoon.

Yet is it real, that isle,

        As our clear islands mortal?

Do flute, bassoon and viol

        But ope with sound a portal,

And show, somehow, somewhere,

        To what looks out from me

That pendulous island rare

        In a moon‑woven sea?

Maybe 'tis truer than ours.

        How true are these? But lo!

That isle that knows no hours

        Nor needeth hours to know,

And that hath truth and root

        Somewhere known of the moon,

Fades in the fading of flute,

        Violin and bassoon.

sexta-feira, 19 de março de 2021

Frades de pedra

«Os frades de pedra, que servem para interceptar a passagem de uma rua, para amparar o cunhal de uma casa, etc, representâo, como direi a seu tempo, um velho culto phallico, já hoje nâo comprehendido do vulgo.»

Leite de Vasconcelos, Religiões da Lusitania na parte que principalmente se refere a Portugal, p. 127

quinta-feira, 18 de março de 2021

A floresta e o pomar

Entre a floresta e o pomar
há dois dedos de conversa.
Ela é mais alta e vê melhor,
ele dá-lhe fruta diversa.

A floresta e o pomar 
trocaram de lugar 
com o charco e a montanha. 
Andam a brincar 
ao jogo do quem me apanha. 
Caiu uma avalanche 
e a paisagem ficou muda. 

quarta-feira, 10 de março de 2021

Dia da mulher

As mulheres e os talheres 

não têm nada em comum, 

elas são de carne e osso 

e algumas gostam de rum. 

Algumas gostam de rum 

outras nem sabem que há, 

às vezes uma mulher 

o que quer ser é má. 

O que quer ser é má, 

onde quer estar é lá, 

põe-se a andar e não volta, 

sem sabre aonde irá? 

Sem sabre aonde irá, 

não pede nada a ninguém, 

depois de dar uma volta 

sente-se muito bem. 

Sente-se muito bem 

e dança escada acima, 

não sabe que idade tem, 

é decerto uma menina.