Vladimir Kush

Vladimir KUSH, Ripples on the Ocean, (Ondulações no Oceano)

Rumi

A vela do navio do ser humano é a fé.
Quando há uma vela, o vento pode levá-lo
A um lugar após outro de poder e maravilha.
Sem vela, todas as palavras são ventos.

Jalāl-ad-Dīn Muhammad RUMI




quarta-feira, 31 de março de 2010

o último dos Quatro Quartetos de T. S. Eliot

Little Gidding

.

.

I

.

A Primavera do meio do Inverno é uma época em si

Sempiterna embora encharcada para o pôr do Sol,

Suspensa no tempo, entre pólo e trópico,

Quando o curto dia está mais brilhante, com geada e fogo

O sol breve arde no gelo, na poça de água e nos fossos da estrada

Reflectindo num espelho aquático

Um clarão que é cegueira no começo da tarde.

E um brilho mais intenso que o lume do ramo, ou o braseiro,

Agita o espírito baço; nenhum vento, mas fogo de Pentecostes

Na época escura do ano. Entre degelo e gelo

A seiva da alma estremece. Não há cheiro de terra

Ou cheiro de coisas vivas. Este é o da época da Primavera

Mas a cláusula do tempo. Agora, a baia de buxo

Se embranquece uma hora com flores transitórias

De neve, uma eflorescência mais súbita

Que aquela do Verão, nem florescendo nem se fanando,

Não no esquema de uma geração.

Onde está o Verão, o inimaginável

Verão zero?

.

..........Se viestes por este caminho

Tomando o caminho que naturalmente tomarias,

Do lugar de onde naturalmente virias,

Se vieste dum lugar na época de Maio, encontrarias os buxos,

De novo brancos, em Maio, com doçura voluptuária.

Seria o mesmo no fim da jornada

Se viesses à noite como um rei quebrado,

Se viestes à noite, não sabendo porque viestes

Seria a mesma coisa, quando deixamos a estrada branca

E nos viramos para trás, para o chiqueiro dos porcos, para a fachada desbotada

E a pedra tumular. E aquilo que pensastes que procuráveis

É apenas uma concha, uma escória de significado

Cujo propósito se quebra somente quando é realizado,

Quando muito. Ou não tinha propósito

Ou o propósito está talvez para além do que pensavas

E é alterado na realização. Há outros lugares

Que também estão no fim do mundo, alguns nas faces do tempo

Ou por cima de um lago escuro, num deserto ou numa cidade

Agora e na Inglaterra.

.

...........Se viestes por este lado,

Tomando qualquer caminho, começando onde quer que seja,

Em qualquer tempo ou em qualquer estação,

Seria sempre a mesma coisa, teríamos de afastar

O sentido e a moção. Não estais aqui para verificar,

Instruir-vos, uma informação de curiosidade,

Ou levar relatório. Estais aqui para ajoelhar

Onde a oração é válida. E a oração é mais

Do que uma ordem de palavras, a ocupação consiste

Do espírito que reza, ou o som da voz que reza

E aquilo para que os homens não tinham palavra, quando vivos,

Podem dizer-vos, estando mortos: a comunicação

Dos mortos tem a língua-de-fogo para além da linguagem dos

Aqui, vivos, a intenção do momento eterno

É a Inglaterra e nenhures. Nunca e sempre.

.

.

II

.

Cinzas na manga de um velho

É toda a cinza que as rosas queimadas deitam

A poeira no ar suspensa

Marca o lugar onde uma história acabou.

A poeira inspirada por uma casa -

A parede, o lambrim e a ratazana.

A morte de esperança e do desespero,

..........Isto é a morte do ar.

.

Há sangue e seca

Sobre os olhos e sobre a boca

Aqui morte e areia suspiram.

O solo sem tripas e enrugado

Boceja com o espectáculo do esforço,

Ri-se sem alegria.

..........Isto é a morte da terra.

.

A água e o mar sucederam

À cidade, à pastagem e à erva.

A água e o fogo zombam

Do sacrifício que negámos.

A água e o fogo apodrecerão

Nos alicerces delapidados que esquecemos

De santuário e do coro.

..........Esta é a morte da água e do fogo.

.

Na hora incerta antes da manhã

..........Perto do fim da noite interminável

..........No recorrente fim do interminável

Depois que a escura pomba de língua flamejante

..........Passou por baixo do horizonte do seu lar

..........Enquanto as velhas folhas faziam barulhos de lata

Sobre o asfalto onde não havia outro som

..........Entre três distritos de onde nascia o fumo

..........Encontrei encontrei um que ia a caminho, parando e outras vezes com pressa,

Como se fosse soprado para mim com as folhas metálicas

..........Antes de vento da última madrugada, que não resistia.

..........E como que fixo com o rosto virado para baixo

Que apontava o escrutínio com o qual desafias

..........O estranho que acabamos de conhecer no crepúsculo que desmaia

..........Reparei no olhar sombrio dalgum mestre morto

A quem eu já conhecera, esquecido, meio lembrado

..........Tanto um como muitos; nas feições castanhas e queimadas

..........Os olhos de um compósito fantasma familiar

Tão íntimo quanto inidentificável.

..........Então assumi um duplo papel, e gritei

..........E ouvi a voz do outro chamar: «O quê! Vós estais aqui?»

Embora não estivéssemos. Eu era ainda o mesmo

..........Conhecendo-me e contudo sendo algo de outrem -

..........E ele com um rosto ainda em formação; contudo as palavras foram suficientes

Para compelir o reconhecimento que precediam.

..........E assim, fazendo a vontade ao vento comum,

..........Demasiadamente estranhos um para o outro para não se parecerem,

De acordo com esta intenção no tempo

..........De não nos encontrarmos em nenhum lugar, nem antes nem depois

..........Pisámos o empedrado numa patrulha muda.

Eu disse: «O espanto que eu sinto é fácil,

..........E contudo a facilidade é causa do espanto. Portanto fala:

..........Posso não compreender, não me lembro.»

E ele: «Não estou ansioso de ensaiar

..........O meu pensamento e a minha teoria que esqueceste.

..........Essas coisas serviram o seu propósito: deixa-as estar.

O mesmo se diz das vossas, e rezai para que sejam perdoadas

..........Pelos outros, como rezo para que perdoeis

..........Tanto o mal como o bem. A fruta da época passada está comida

E o animal saciado dará pontapés no balde vazio

..........Pois as palavras do próximo ano esperam outra voz

Mas, como a palavra agora não apresenta nenhum obstáculo

..........Ao espírito não saciado e peregrino

..........Entre dois mundos tornados parecidíssimos,

Assim eu encontro palavras que nunca pensei dizer

..........Em ruas que nunca pensei revisitar

..........Quando deixei o meu corpo num país longínquo.

Dado que a nossa preocupação era a palavra, e a palavra nos impelia

..........A purificar o dialecto da tribo

..........E preparar o espírito a um relance para o passado e para o futuro,

Deixai-me revelar os dons reservados para a idade

..........Impor uma coroa sobre o esforço de uma vida.

..........Primeiro, a ficção fria de um sentido moribundo

Sem encanto, não oferecendo nenhuma promessa

..........A não ser a amarga insipidez do fruto fantasma

..........Quando a alma e o corpo começam a separar-se.

Em segundo lugar, a consciente impotência da raiva

..........Perante a loucura humana, e a laceração

..........Do riso ao que deixa de nos divertir

Por último, a dilacerante dor de reviver

..........Tudo quanto haveis feito, e sido;: a vergonha

..........Dos motivos revelados tarde, e a consciência

Das coisas mal feitas e feitas para prejuízo dos outros

..........Que uma vez tomaste por exercício de virtude.

..........Então a aprovação dos tontos fere, e a honra mancha-se.

De erro em o exasperado espírito

..........Continua, a não ser restaurado pelo fogo refinado

..........Onde deves mover-te com medida, tal na dança.»

O dia estava a nascer. Na rua desfigurada

..........Ele deixou-me, com uma espécie de benção,

..........E desvaneceu-se ao som de uma trompa.

.

.

III

.

Há três condições que muitas vezes são parecidas

E contudo divergem completamente, florescem no mesmo buxo;

Ligação ao próprio e às coisas e às pessoas, separação

Do próprio e das coisas e das pessoas: e, crescendo entre eles, a indiferença

Que é parecida com os outros como a morte se parece com a vida,

Estando entre duas vidas, sem florir, entre

A urtiga viva e a morte. É esta a utilidade da memória:

Para a libertação - não menos do amor mas expendido

O amor está para além do desejo, e a sua libertação

Do futuro como do passado. Assim, o amor de um país

Começa como uma ligação e o nosso centro de acção

E chega a achar que a acção tem pouca importância

Embora nunca diferente. A história pode ser servidão

A história pode ser libertação. Repara, agora, como desaparecem,

Os rostos e os lugares, com o próprio que, se pudesse, os amava,

Para se renovar, transfigurado, noutro perdão.

O pecado é inelutável, mas

Tudo estará certo, e

Toda a espécie de coisas estará certa.

Se eu pensar, outra vez, neste lugar

E no povo, não inteiramente recomendável,

Sem imediato parentesco ou gentileza.

Mas um qualquer de génio peculiar,

Todos tocados por um comum génio

Unidos na luta que os dividiu;

Se eu me lembrar de um rei

De três homens, e de mais ainda, no patíbulo

E de alguns que morreram esquecidos

E de um que morreu cego e mudo

Por que razão deveríamos celebrar

Mais estes homens do que os moribundos?

Não é tocar o sino de trás para diante

Nem é encantamento

Evocar o espírito de uma rosa

Não podemos reviver velhas feições

Não podemos restaurar velhas políticas

Ou seguir um tambor antigo

Estes homens, e aqueles que os opuseram

E aqueles a quem eles se opuseram

Aceitaram a constituição do silêncio

E estão dobrados num só princípio

Seja o que for que herdámos dos desafortunados

Tomámos dos vencidos

O que eles tinham para nos deixar - um símbolo:

Um símbolo aperfeiçoado na morte

E tudo estará certo e

Toda a espécie de coisas estará certa

Pela purificação do motivo

No terreno da nossa súplica.

.

.

IV

.

A pomba a descer corta o ar

Como chama de terror incandescente

Da qual as línguas declararam

A única descarga do pecado e do erro.

A única esperança, ou então o desespero

..........Jaz na escolha de pira ou da pira

..........Ser redimido do fogo pelo fogo.

.

Quem então concebeu o tormento? O amor

O amor é o Nome não familiar

Por trás das mãos que teceram

A camisa intolerável da chama

Que o poder humano não pode remover

..........Apenas vivemos, mal suspiramos

..........Consumidos pelo fogo ou pelo fogo.

.

.

V

.

O que chamamos o começo é muitas vezes o fim

E fazer um fim é fazer um começo.

O fim é donde começamos. E cada frase

E período que estão certos (onde cada palavra está em casa,

Tomando o seu lugar para suportar os outros,

A palavra nem difícil nem ostensiva,

Um comércio fácil do velho com o novo

A palavra comum exactamente sem vulgaridade,

A palavra formal precisa mas não pedante

Os consortes completos dançando juntos)

Cada frase e cada período são um fim e um começo,

Cada poema um epitáfio. E qualquer acção

É um passo para o cadafalso, para o fogo, pela garganta do mar abaixo

Ou para uma pedra ilegível: e é aí que começamos.

.

Morremos com os moribundos:

Repara, eles vão-se embora, e nós vamos com eles.

Nascemos com os mortos:

Repara, eles regressam, e trazem-nos com eles.

O momento da rosa e o momento do teixo

São de igual duração. Um povo sem história

Não é redimido do tempo, pois a história é um padrão

De momentos sem tempo. Assim, enquanto falha a luz,

Numa tarde de Inverno, numa capela secular

A história é agora e na Inglaterra.

.

Com a atracção deste Amor e a voz deste Chamamento

.

Não deixaremos de explorar

E no fim do nosso explorar

Será começar onde começámos

E conhecer o lugar pela primeira vez

Através do desconhecido portão relembrado

Quando o último pedaço de terra descobrir

É aquele que foi o começo;

Na fonte do rio mais longo

A voz da queda-d'água escondida

E as crianças na macieira

Desconhecido, porque não cuidada

Mas ouvida, meio ouvida, na quietude

Entre duas ondas do mar.

Depressa, agora, aqui, agora sempre -

Uma condição de completa simplicidade

(Custando não menos que tudo)

E tudo estará certo e

Toda a espécie de coisas estarão certas

Quando as línguas da chama estão dobradas para dentro

Em direcção aos nós coroados do fogo

E o fogo e as rosas são só um.

.

.

T. S. Eliot, Antologia Poética, Estudo prévio, selecção e tradução de José Palla e Carmo, Publicações Dom Quixote, Lisboa, 1988

2 comentários:

Nivaldete disse...

É tanto, tanto para ser (a)colhido nesse poema que... bem, fico silenciosa..., sentindo. Só.

almariada disse...

gostei muito de copiar este texto, Nivaldete... foi uma experiência e tanto!
Boa Páscoa!