Estávamos em 1918. A minha rua era então uma pequena rua de província, situada quase fora de portas: de um lado, uma escassa correnteza de prédios que pouco ultrapassava a Rua Francisco Sanches. Do outro a fila ainda era menor: uns oito prédios dispersos erguiam-se sozinhos, desengonçados com a timidez da idade ingrata. Para "além" eram os campos do Areeiro, a "Perna de Pau", o cemitério...
Tudo quanto a imaginação de uma criança pode engendrar de tenebroso sobre o desconhecido estava para mim concretizado nesse "além".
À noite, o mistério adensava-se, por vezes ouviam-se gritos vindos daqueles lados (ouviam-se ou seria eu que os ouvia?). Cobria então o medo com o cobertor e suava copiosamente enquanto o coração galopava, galopava através do escuro sem fim. Até que o sono misericordioso tudo vinha aquietar. Mas, no dia seguinte, os campos lá estavam firmes e longínquos na sua hostilidade impenetrável.
Esta suposta hostilidade afastava-me das traseiras e lançava-me invariavelmente na sacada do 1º andar donde eu dominava a rua. Era por essa janela que eu espreitava o mundo e o recriava à minha maneira. A panorâmica não era muito alegre, antes pelo contrário, era até bastante trágica: os cortejos sucediam-se de manhã à noite sem interrupção numa debandada para o "além" o tal "além" que, para mim, mercê de um raciocínio pré-lógico, culminava no Alto de S. João*.
Pneumónica era a palavra que constantemente me soava aos ouvidos: "morreu com a pneumónica". "Está com a pneumónica", "Foi a pneumónica". Quem seria essa tal pneu-pneumónica? Tão má e com um nome tão esquisito?
Aquele movimento da minha rua, se bem que triste e muito repetido, tinha um certo aparato e tenho que confessar que me distraía bastante. Às vezes porém acontecia passarem cortejos com fardas de militares, crepes e música. Então talvez devido à música, sentia-me triste e vontade de chorar. Era nessa altura que sentia pregados em mim os olhos muito brilhantes de D. Angelina.
A D. Angelina era a vizinha que morava numa cave mesmo em frente da minha janela: alta, muito magra, calçando uns sapatos de saltos cambados e usando sempre (se a memória não me atraiçoa) o mesmo casaco de cor indefinida e a mesma gola de pele como traço de suprema elegância: um pequeno chapéu preto adornado com uma peninha vermelha e um véu que lhe dissimulava o rosto e lhe escondia a idade.
Quem era a D. Angelina ninguém o sabia. Havia quem aventasse que ela já tinha sido uma grande senhora, mas a maioria afirmava que não passava de uma toleirona, de uma pelintra, de uma pindérica...
Adjectivos tão variados iam alargando os meus conhecimentos do vocabulário de mal-dizer e aumentando a minha secreta simpatia por essa figura misteriosa que mantinha sempre a mesma calma olímpica perante aquelas que a miravam de soslaio. Pontualmente saía todas as manhãs e voltava com uns pequenos embrulhos que deveriam ser as suas reduzidas compras.
A pouco e pouco foi-se travando uma espécie de diálogo mudo entre a minha sacada e a cave da D. Angelina. Muitas vezes surpreendia o seu olhar fixo em mim, eu então acenava-lhe um adeus e ficava com a impressão de que ela me correspondia por detrás das cortinas.
Outra das minhas distracções era o observar as "bichas".: logo de manhã começava a "bicha" do pão e do leite, depois era a do azeite, do bacalhau, etc. Era divertido vê-las formarem-se muito direitinhas, com muita ordem e depois irem engrossando, engrossando. Até que rebentava um grande burburinho com as cestas a voarem pelo ar. Pouco depois aparecia a guarda que metia tudo na ordem...
Um dia calhou-me a mim o ser protagonista de um incidente de "bichas": ficara no lugar de minha mãe para guardar a vez. Esta responsabilidade fez-me sentir muito importante e, então do alto dos meus quatro anos exibia vaidosamente uma bolsinha de malha de prata que me tinha sido oferecida como prenda de aniversário. Eis que de repente senti um esticão e a bolsinha desapareceu como por arte mágica. Desatei a chorar e mais uma vez se levantou o burburinho do costume: "Eu não fui, Deus me livre se eu roubava um anjinho destes." "Oh sr. Guarda pode levar-me para a esquadra, mas juro-lhe por tudo que não fui eu!"
Entretanto a D. Angelina aproximou-se de mim, pegou-me na mão e disse-me baixinho: "Vem comigo que eu tenho lá em casa uma boneca muito linda para te mostrar e, com grande espanto de todos eu segui a minha vizinha." Entrámos. Lá dentro havia uma penumbra fria, cor de pérola e um cheiro bastante activo e indefinível que talvez se assemelhasse muito ao do bolor, mas isso não me desagradava nada, antes pelo contrário, aguçava-me o gume do mistério. A boneca lá estava em lugar de honra, sentada numa almofada entre volumes confusos (trapos? papéis?). Era de facto uma linda boneca, quase da minha altura, vestida de cetim azul e com um mantelete prateado; a palidez da sua cara de cera e a cor do cabelo quase branca davam-lhe um aspecto irreal como se se tratasse de uma imagem desfocada.
É a Mimi, disse-me. - Recebi-a das mãos de S. Majestade - ao pronunciar "Sua Majestade" fez uma profunda reverência, o que me deixou bastante admirada, pois julgava a minha amiga feita de uma só peça. "Sim, essa gentinha aí da rua é que não me conhece, mas eu vim de muito alto." De mim para mim, eu perguntava-me porque estaria ela agora ali a morar tão baixo."
Sílvia Soares
Publicado no jornal "República", 12-01-1968
in: Matilde Rosa Araújo, "A infância lembrada", p. 215 a 217, Livros Horizonte, Lisboa, 1986
*Alto de S. João, cemitério de Lisboa: "foi construído por ocasião da epidemia de cólera morbus que assolou a cidade de Lisboa em 1833, ficando destinado a servir os moradores da zona oriental da cidade. Durante mais de um século foi a maior necrópole de Lisboa, razão que explica o seu carácter ecléctico, apresentando construções de cariz popular misturadas com outras mais elaboradas. A Primeira República escolheu este espaço para homenagear os seus heróis."
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