Vladimir Kush

Vladimir KUSH, Ripples on the Ocean, (Ondulações no Oceano)

Rumi

A vela do navio do ser humano é a fé.
Quando há uma vela, o vento pode levá-lo
A um lugar após outro de poder e maravilha.
Sem vela, todas as palavras são ventos.

Jalāl-ad-Dīn Muhammad RUMI




quarta-feira, 19 de agosto de 2009

Vos compriendeis?

"Inclinou suavemente a cabeça e pronunciou algumas palavras que nem o major nem o seu amigo conseguiram compreender.

Então, o patagónio, depois de ter observado atentamente os estranhos, mudou de linguagem; mas, fizesse ele o que fizesse, este novo idioma não foi melhor compreendido que o primeiro. Contudo, algumas expressões de que o indígena se serviu impressionaram Glenarvan. Pareceram-lhe pertencer à língua espanhola, de que conhecia algumas palavras usuais.

-Español? - disse.

O Patagónio abanou a cabeça de cima para baixo, movimento alternado que tem o mesmo significado afirmativo em todos os povos.

-Bom - disse o major - este assunto é para o nosso amigo Paganel. Está feliz por ter tido a ideia de aprender espanhol!

Chamaram Paganel. Acorreu imediatamente e cumprimentou o patagónio com uma delicadeza muito francesa, da qual este provavelmente nada entendeu. O sábio geógrafo foi posto ao corrente da situação.

-Perfeito - disse.

E, abrindo muito a boca a fim de melhor articular, disse:

-Vos sois um homem de bem.

O indígena escutou e nada respondeu.

-Não compreende - disse o geógrafo.

-Talvez não acentue bem! - respondeu o major.

-Tem razão. Que diabo de sotaque!

E de novo Paganel recomeçou o seu cumprimento. Obteve o mesmo resultado.

-Mudemos de frase - disse e, pronunciando com uma lentidão magistral, deu a ouvir estas palavras:

-Sem duvida, um patagão?

O outro continuou mudo com antes.

-Dizeime! - acrescentou Paganel.

O patagónio continuou a não responder.

-Vós compriendeis? - gritou Paganel tão violentamente que quase despedaçava as cordas vocais.

Era evidente que o índio não compreendia, porque respondeu, mas em espanhol:

-No comprendo.

Foi a vez de Paganel ficar aturdido, e tirou depressa os óculos da testa para os olhos, como um homem irritado.

-Que eu seja enforcado - disse - se percebo uma palavra deste dialecto infernal! É araucaniano, sem dúvida!

-Não, não - respondeu Glenarvan - este homem respondeu certamente em espanhol.

E voltando-se para o patagónio:

-Español? - repetiu.

-Si, si! - respondeu o indígena.

A surpresa de Paganel transformou-se em estupefacção. O major e Glenarvan olhavam um para o outro pelo canto do olho.

-Ora esta!, meu sábio amigo - disse o major, enquanto um meio sorriso se lhe desenhava nos lábios - não terá cometido uma dessas distracções de que me parece ter o monopólio?

-Quê! - disse o geógrafo, prestando ouvidos.

-Sim! É evidente que este patagónio fala espanhol...

-Ele!

-Ele! Será que, por acaso, aprendeu uma outra língua, julgando estudar...

Mac Nabbs não terminou. Um «Oh!» vigoroso do sábio, acompanhado de um erguer de ombros, interrompeu-o.

-Major, está a ir longe de mais - disse Paganel com um tom bastante seco.

-Enfim, como não compreende! - respondeu Mac Nabbs

-Não compreendo porque este indígena fala mal! - replicou o geógrafo que começava a perder a paciência.

-Quer dizer que ele fala mal porque você não compreende - respondeu tranquilamente o major.

-Mac Nabbs - disse, então, Glenarvan - essa é uma suposição inadmissível. Por muito distraído que seja o nosso amigo Paganel, não podemos supor que as suas distracções tenham chegado ao ponto de aprender uma língua em vez de outra!

-Então, meu caro Edward, ou antes o senhor, meu bom Paganel, explique-me o que se passa aqui.

-Não explico - respondeu Paganel - constato. Tenho aqui o livro onde me treino diariamente nas dificuldades da língua espanhola! Examine-o, major, e verá se o estou a enganar!

Dito isto, Paganel, revistou os seus enormes bolsos; após alguns minutos de buscas, tirou um volume em muito mau estado e apresentou-o com um ar seguro. O major pegou no livro e observou-o:

-Pois bem, que obra é esta? - perguntou.

Os Lusíadas - respondeu Paganel - uma admirável epopeia que...

-Os Lusíadas! - exclamou Glenarvan.

-Sim, meu amigo, Os Lusíadas do grande Camões, nem mais nem menos!

-Camões - repetiu Glenarvan - mas, infeliz amigo, Camões é português! É português que aprende há seis semanas!

-Camões! Lusíadas! Português!

Paganel não conseguiu dizer mais nada."

Júlio Verne, Os filhos do Capitão Grant, vol. 1, pp. 106 a 108, Publicações Europa-América, Mem Martins, 1987

O mais engraçado é que as frases em português têm notas de rodapé onde estão traduzidas como se segue:

-Vós sois um homem de bem. (É um homem de bem.)

-Sem dúvida, um patagão? (Um Patagónio, sem dúvida.)

-Dizei-me! (Responda!)

-Vos compriendeis? (Compreende?)

Sem comentários: