JK Rowling, autora da série de livros de grande sucesso Harry Potter, fez o Discurso Inaugural, "Os Benefícios Colaterais do Fracasso e a Importância da Imaginação", no Encontro Anual da Associação de Alunos de Harvard, em Junho de 2008.
Esta é a minha tradução para português do texto tal como foi pronunciado:
Presidente Faust, membros da Corporação Harvard e do Conselho de Supervisores, membros do corpo docente, pais orgulhosos e, acima de tudo, licenciados.
A primeira coisa que eu gostaria de dizer é "muito obrigada". Harvard não me concedeu apenas uma honra extraordinária, também semanas de medo e náusea que tenho sofrido ao pensar em fazer este discurso inaugural e me fizeram perder peso. Só vantagens, portanto! Agora tudo o que tenho a fazer é respirar fundo, dar uma olhadela às faixas vermelhas e convencer-me de que estou na maior reunião mundial dos Gryffindor.
Fazer um discurso inaugural é uma grande responsabilidade; ou foi o que eu pensei até que me pus a pensar lá para trás no discurso da minha própria licenciatura. Naquele dia a oradora inaugural foi a distinta filósofa britânica Baronesa Mary Warnock. Reflectir sobre o seu discurso ajudou-me imenso a escrever este, porque acontece que não me consigo lembrar de uma única palavra que ela tenha dito. Esta descoberta libertadora permite-me prosseguir sem qualquer receio de vos vir a influenciar inadvertidamente para que abandonem carreiras promissoras nos negócios, no direito ou na política e se dediquem às vertiginosas delícias de se tornarem um alegre (gay) feiticeiro.
Estão a ver? Se tudo o que se lembrarem nos próximos anos for a piada do "feiticeiro gay", já ganhei à Baronesa Mary Warnock. Objectivos ao nosso alcance: o primeiro passo para a auto-ajuda.
Na verdade tenho vasculhado a minha mente e coração para o que vos devia dizer hoje. Perguntei a mim mesma o que eu desejaria ter sabido no dia da minha própria licenciatura, e que lições importantes aprendi nos 21 anos que se passaram entre esse dia e hoje.
Trago duas respostas. Neste dia maravilhoso em que estamos reunidos para celebrar o vosso sucesso académico, decidi falar sobre os benefícios do fracasso. E como vocês estão no limiar do que às vezes se chama "vida real", quero exaltar a importância crucial da imaginação.
Estas podem parecer escolhas quixotescas ou paradoxais, mas por favor acompanhem-me.
Olhar para trás, para mim aos 21 anos quando me licenciei, é uma experiência um pouco desconfortável para a pessoa de 42 anos em que se tornou. Há metade do tempo da minha vida, vivia num equilíbrio difícil entre as ambições que eu tinha para mim, e aquilo que os mais próximos esperavam de mim.
Eu estava convencida que a única coisa que queria fazer, sempre, era escrever ficção. No entanto, os meus pais, os quais vinham ambos de meios empobrecidos e nenhum dos quais tinha estado na universidade, tomaram o ponto de vista segundo o qual a minha imaginação demasiado activa era uma característica pessoal divertida que nunca iria pagar uma hipoteca ou garantir uma reforma. Eu sei que esta ironia tem agora a força de uma bigorna de desenhos animados.
Portanto eles esperavam que eu seguisse uma carreira profissional; eu queria estudar Literatura Inglesa. Conseguimos chegar a um acordo que em retrospectiva não satisfez ninguém, e fui estudar Línguas Modernas. Mal o carro dos meus pais dobrou a esquina ao fundo da rua larguei o Alemão e desci a correr o corredor de Clássicas.
Não me lembro de ter dito aos meus pais que estava a estudar Clássicas, podem muito bem ter descoberto isso pela primeira vez no dia da minha licenciatura. De todos os assuntos deste planeta, julgo que teriam tido dificuldades em nomear um menos útil do que a Mitologia Grega no que concerne a obter uma casa-de-banho de executivo.
Gostaria de deixar claro, entre parêntises, que não culpo os meus pais pelo ponto de vista deles. Há uma data de validade para culpar os pais por vos encaminharem no sentido errado; no momento em que têm idade suficiente para assumir a direcção, a responsabilidade é vossa. E mais, não posso culpar os meus pais por desejarem que eu nunca tivesse a experiência da pobreza. Eles próprios tinham sido pobres, e eu depois fui pobre, e concordo completamente com eles que não é uma experiência que enobreça. A pobreza acarreta medo, e stress, e às vezes depressão; significa mil humilhações mesquinhas e dificuldades. Subir na vida pelos seus próprios esforços, é de facto algo de que uma pessoa se pode orgulhar, mas a pobreza em si só é romantizada pelos parvos.
O que eu mais temia para mim naquela idade não era a pobreza, mas o fracasso.
Na vossa idade, apesar de uma nítida falta de motivação na universidade, onde eu gastava demasiado tempo na cafetaria a escrever histórias, e muito pouco tempo nas aulas, tinha jeito para passar nos exames, e isso, durante anos, tinha sido a medida de sucesso na minha vida e na dos meus colegas.
Não sou suficientemente parva para supor que lá porque vocês são jovens, talentosos e bem-educados, nunca tenham conhecido o sofrimento ou a tristeza. O talento e a inteligência ainda nunca inocularam ninguém contra os caprichos do destino e, nem por um momento suponho que todos aqui tenham gozado uma existência de imperturbável privilégio e satisfação.
No entanto o facto de se estarem a licenciar em Harvard sugere que não estão muito familiarizados com o fracasso. Podem estar motivados tanto pelo receio do fracasso como pelo desejo de sucesso. De facto, a vossa concepção de fracasso pode não estar muito longe da ideia de sucesso das pessoas comuns, tão alto vocês já voaram.
Afinal, todos nós temos que decidir por nós mesmos o que é fracassar, mas o mundo está bastante empenhado em vos fornecer um conjunto de critérios, se vocês deixarem. Por isso é justo dizer que sob qualquer medida convencional, apenas sete anos depois do dia da minha licenciatura, eu tinha fracassado numa escala épica. Um casamento excepcionalmente curto tinha-se desfeito, e eu estava desempregada, sózinha com uma filha e tão pobre quanto é possível ser na Grã-Bretanha moderna, sem ser sem-abrigo. Os temores que os meus pais tinham tido por mim, e os que eu tinha tido para mim, tinham-se ambos realizado e eu era o maior fracasso que conhecia.
Agora não vou ficar por aqui e dizer-vos que o fracasso é divertido. Esse período da minha vida foi um período escuro, e eu não tinha ideia de que fosse ter o que a imprensa tem representado desde então como uma espécie de final de conto de fadas. Eu não tinha ideia então de quão comprido seria o túnel, e durante muito tempo, qualquer luz ao fundo era mais uma esperança do que uma realidade.
Então porque falo sobre os benefícios do fracasso? Simplesmente porque fracasso significou que me despi do que não era essencial. Deixei de fingir para mim mesma que era alguma coisa que não era, e comecei a investir toda a minha energia em terminar o único trabalho que realmente me interessava. Se eu tivesse tido sucesso em qualquer outra coisa, poderia nunca ter encontrado a determinação de vencer na única área a que eu verdadeiramente acreditava pertencer. Fui libertada, porque o meu maior medo se tinha tornado real e eu ainda estava viva, ainda tinha uma filha que adorava, e tinha uma velha máquina de escrever e uma grande ideia. E assim o fundo do poço tornou-se a base sólida sobre a qual reconstrui a minha vida.
Vocês podem nunca falhar à escala a que eu falhei, mas algum fracasso na vida é inevitável. É impossível viver sem fracassar nalguma coisa, a não ser que vocês vivam tão cautelosamente que poderiam igualmente não ter vivido de todo - caso em que fracassariam por definição.
O fracasso deu-me uma segurança interior que eu nunca tinha conseguido por passar nos exames. O fracasso ensinou-me coisas sobre mim que eu não poderia ter aprendido de outra maneira. Descobri que tinha uma vontade forte, e mais disciplina do que pensava; também descobri que tinha amigos cujo valor estava realmente acima do preço dos rubis.
O conhecimento de que emergiram mais sábios e fortes de uma derrota significa que a partir de então ficam muito mais seguro da vossa capacidade de sobreviver. Nunca vos conhecereis verdadeiramente a vocês mesmos, ou a força dos vossos relacionamentos, até que ambos tenham sido testados pela adversidade. Esse conhecimento é um verdadeiro dom, porque é obtido penosamente, e valeu mais que qualquer outra qualificação que eu alguma vez tenha obtido.
Portanto, dando um Salto no Tempo, diria à pessoa que fui aos 21 anos que a felicidade pessoal reside em saber que a vida não é uma lista de compras ou realizações. As vossas qualificações, os vossos currículos, não são a vossa vida, embora vocês vão conhecer muitas pessoas da minha idade e mais velhas que as confundam. A vida é difícil, e complicada, e para lá do controle total de qualquer pessoa, e a humildade de o saber há-de permitir-vos vencer as suas vicissitudes.
Podem pensar que escolhi o meu segundo tema, a importância da imaginação, por causa do papel que desempenhou na reconstrução da minha vida, mas não é realmente por isso. Embora eu, pessoalmente, defenda o valor das histórias de deitar até ao último suspiro, aprendi a valorizar a imaginação num sentido muito mais amplo. A imaginação não é apenas a unicamente humana capacidade de ter a visão do que não é, e portanto a fonte de toda a invenção e inovação. Na sua inegável capacidade mais transformadora e reveladora, é o poder que nos permite sentir empatia com seres humanos cujas experiências nunca partilhámos.
Uma das maiores experiências formadoras na minha vida foi anterior a Harry Potter, e foi uma grande contribuição para o que depois escrevi nesses livros. Esta revelação veio na forma de um dos meus primeiros empregos diários. Embora estivesse inclinada a escrever histórias durante a minha hora de almoço, pagava o aluguer, nos meus 20 e poucos anos, trabalhando no departamento africano de investigação, na sede da Amnistia Internacional, em Londres.
Aí no meu pequeno escritório li cartas rabiscadas rapidamente contrabandeadas para fora de regimes totalitários por homens e mulheres que se arriscavam à prisão para informar o mundo exterior do que lhes estava a acontecer. Vi fotografias dos que tinham desaparecido sem deixar rasto, enviadas à Amnistia pelas suas famílias e amigos desesperados. Li depoimentos de vítimas de tortura e vi fotografias dos seus ferimentos. Abri relatos escritos à mão por testemunhas oculares de julgamentos sumários e execuções, de sequestros e violações.
Muitos dos meus colegas de trabalho eram ex-presos políticos, pessoas que tinham sido afastadas das suas casas, ou tinham fugido para o exílio, porque tinham tido a ousadia de falar contra os seus governos. Os visitantes dos nossos escritórios incluíam aqueles que tinham vindo para dar informações, ou para tentar descobrir o que tinha acontecido àqueles que tinham deixado para trás.
Nunca esquecerei o africano vítima de tortura, um jovem não muito mais velho do que eu nessa altura, que tinha ficado mentalmente perturbado depois de tudo o que tinha sofrido na sua terra natal. Tremia incontrolavelmente enquanto falava para uma câmara de vídeo sobre a brutalidade que lhe tinha sido infligida. Era uns trinta centímetros mais alto do que eu, e parecia tão frágil como uma criança. Foi-me pedido que fosse com ele até à estação do metro depois disso, e este homem cuja vida tinha sido destroçada pela crueldade pegou na minha mão com elegante cortesia, e desejou-me felicidade futura.
E enquanto eu viver hei-de lembrar-me de caminhar num corredor vazio e ouvir de repente, por trás de uma porta fechada, um grito de dor e horror como nunca tinha ouvido. A porta abriu-se, e a investigadora pôs a cabeça de fora e disse-me que fosse a correr fazer uma bebida quente para o jovem que estava sentado com ela. Tinha acabado de ter que lhe dizer que em retaliação por ter falado contra o regime do seu país, a sua mãe tinha sido presa e executada.
Todos os dias da minha semana de trabalho nos meus 20 e poucos anos eu era recordada da sorte incrível que tinha por viver num país com um governo democraticamente eleito, onde a representação legal e um julgamento público eram direitos de todos.
Todos os dias via mais provas dos males que a humanidade inflige aos seus companheiros humanos, para ganhar ou manter o poder. Comecei a ter pesadelos, pesadelos literais, sobre algumas coisas que vi, ouvi e li.
No entanto também aprendi mais sobre a bondade humana na Amnistia Internacional do que alguma vez antes conhecera.
A Amnistia mobiliza milhares de pessoas que nunca foram torturadas nem presas pelas suas crenças a agir a favor daqueles que o foram. O poder da empatia humana, conduzindo à acção colectiva, salva vidas, e liberta prisioneiros. Pessoas comuns, cujo bem-estar pessoal e segurança estão assegurados, juntam-se em grande número para salvar pessoas que não conhecem e nunca hão-de encontrar. A minha pequena participação nesse processo foi uma das experiências mais humildes e inspiradoras da minha vida.
Como nenhuma outra criatura neste planeta, os seres humanos podem aprender e compreender, sem ter tido a experiência. Podem pôr-se no lugar de outras pessoas.
Claro que este é um poder, como o da minha magia de ficção, que é moralmente neutro. Pode-se usar essa capacidade para manipular, ou controlar, tanto quanto para compreender ou simpatizar.
E muitos preferem não exercer a sua imaginação de todo. Escolhem permanecer confortavelmente dentro dos limites da sua própria experiência, nunca se incomodando a pensar como seria a sensação de ter nascido outros e não quem são. Podem recusar-se a ouvir gritos ou espreitar para dentro de prisões; podem fechar as suas mentes e corações a qualquer sofrimento que não lhes diga pessoalmente respeito; podem recusar-se a saber.
Poderia ser tentada a invejar as pessoas que podem viver desse modo, mas não acho que tenham menos pesadelos do que eu tenho. Escolher viver em espaços apertados leva a uma forma de agorafobia mental, e isso traz consigo os seus próprios terrores. Acho que os que intencionalmente não imaginam vêem mais monstros. Muitas vezes têm mais medo.
O que é mais, aqueles que escolhem não simpatizar permitem monstros reais. Porque sem nunca cometermos um acto de verdadeira maldade, colidimos com ela, através da nossa própria apatia.
Uma das muitas coisas que aprendi no final desse corredor de Clássicas que desci aos 18 anos para me aventurar em busca de algo que eu não poderia então definir, foi isto, escrito pelo grande autor grego Plutarco: O que nós alcançamos internamente mudará a realidade exterior.
Esta é uma afirmação surpreendente e que no entanto se comprova mil vezes todos os dias das nossas vidas. Exprime, em parte, a nossa inescapável conexão com o mundo exterior, o facto de que tocamos a vida dos outros simplesmente por existir.
Mas quanto é que vocês, licenciados de Harvard de 2008, podem tocar a vida de outras pessoas? A vossa inteligência, a vossa capacidade de trabalhar arduamente, a educação que ganharam e receberam, dá-vos um estatuto único, e uma responsabilidade única. Até a vossa nacionalidade vos diferencia. A grande maioria de vocês pertence à única superpotência remanescente no mundo. A forma como vocês votam, a forma como vocês vivem, a forma como vocês protestam, a pressão que fazem sobre o vosso governo, têm impacto muito para além das vossas fronteiras. Esse é o vosso privilégio, e o vosso fardo.
Se vocês escolherem usar o vosso estatuto e influência para levantar a voz em nome dos que não têm voz; se vocês escolherem identificar-se não apenas com os poderosos mas também com os que não têm poder; se vocês mantiverem a capacidade de se imaginarem nas vidas daqueles que não têm as vossas vantagens, então não serão apenas as vossas orgulhosas famílias a celebrar a vossa existência, mas milhares e milhões de pessoas cuja realidade vocês ajudaram a mudar. Não precisamos de magia para mudar o mundo, já trazemos dentro de nós todo o poder de que necessitamos: temos o poder de imaginar melhor.
Estou quase a terminar. Tenho uma última esperança para vocês, que é algo que eu já tinha aos 21 anos. Os amigos com quem me sentei no dia da minha licenciatura têm sido meus amigos para a vida. São padrinhos dos meus filhos, pessoas a quem tenho podido recorrer em tempos de dificuldade, pessoas que tiveram a amabilidade de não me processar quando usei os nomes deles para Devoradores da Morte. No dia da nossa licenciatura, estávamos ligados por uma enorme afeição, pela nossa experiência partilhada de um tempo que nunca poderia voltar, e, claro, pelo conhecimento de que tínhamos certas provas fotográficas que seriam extremamente valiosas se algum de nós concorresse a Primeiro-Ministro.
Portanto hoje, desejo-vos nada melhor do que amizades assim. E amanhã, espero que mesmo que vocês não se lembrem de uma única palavra minha, se lembrem das de Séneca, outro daqueles romanos antigos que conheci quando fugi pelo corredor de Clássicas, retirando-me dos degraus para subir numa carreira em busca de sabedoria antiga: Como um conto, assim é a vida: não é o tempo que dura, mas quão boa é, o que é importante.
Desejo-vos a todos vidas muito boas.
Muito obrigada.
2 comentários:
Gostei muito do depoimento. Aprendi.
sim, Nivaldete, é mesmo muito bom e o original em inglês é, claro, muito melhor que a tradução... :)
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