-Na porta da igreja da minha aldeia pregaram a pata de um urso que matei na Primavera. Encontrei-o numa colina coberta de neve, virando um tronco de madeira com a pata.
-Quando foi isso?
-Há uns seis anos atrás. E cada vez que via aquela pata, tal qual a mão de um homem, só com garras compridas, seca e pregada pela palma à porta da igreja, sentia um verdadeiro prazer.
-Orgulho, não é?
-Orgulho de me lembrar do encontro com o urso na montanha, nesse começo de Primavera. Mas matar um homem, que é um homem como nós, não é coisa que me dê orgulho.
-Não se lhe pode pregar a pata na porta da igreja - disse Robert Jordan.
-Não. É uma barbaridade tão grande que nem se pode pensar nela. No entanto a mão do homem parece-se com a pata do urso.
-Também o peito do homem é igual ao peito do urso - disse Jordan. - Tirada a pele do urso, as semelhanças musculares são notáveis.
-Sim. Os ciganos acreditam que o urso é irmão do homem.
-Os Índios da América também - observou Jordan. - Quando matam um urso, pedem-lhe desculpa e perdão. Penduram-lhe a cabeça numa árvore e pedem-lhe perdão antes de se retirarem.
-Os ciganos acreditam que o urso é irmão do homem porque, tirada a pele, tudo é igual e também porque o urso bebe cerveja, gosta de música e sabe dançar.
-O mesmo pensam os índios.
-Os índios serão ciganos?
-Não, mas em relação ao urso pensam como os ciganos.
-Compreendo. Os ciganos também acham que o urso é irmão do homem porque gosta de roubar.
-Tens sangue cigano?
-Não, mas conheço-os bem. Lidei muito com eles, principalmente depois do movimento. Há muitos nas montanhas. Para os ciganos não é pecado matar fora da tribo. Eles negam que seja assim, mas é verdade.
-São como os mouros.
-Sim, mas os ciganos têm um ror de leis secretas que negam ter. A guerra tornou-os maus como dantes eram.
-Eles não compreendem as razões da guerra. Não sabem a razão porque combatemos.
-É verdade - confirmou o velho. - Só sabem que há guerra e que por isso podem matar como antigamente, sem que ninguém lhes peça contas.
-Tu já mataste alguém? - inquiriu Jordan animado pela intimidade que a escuridão favorecia e por um dia passado em comum.
-Sim, muitas vezes. Mas nunca me senti satisfeito. Para mim matar um homem é pecado. Mesmo quando são fascistas que é preciso matar. Eu, por mim, acho grandes diferenças entre um homem e um urso e não acredito nessa bruxaria dos ciganos a respeito da fraternidade com animais. Não. Eu sou contrário à matança de homens.
-E, no entanto, mataste.
-Sim. E voltarei a matar. Mas se escapar com vida hei-de fazer o possível por viver de modo a não fazer mal a ninguém, a fim de ser perdoado.
-Por quem?
-Quem é que sabe? Desde que não há Deus, nem Filho, nem Espírito Santo, quem pode perdoar? Eu não sei.
Ernest Hemingway, Por quem os sinos dobram, p. 43 e 44, Livros do Brasil, Lisboa, 2000
2 comentários:
http://www.youtube.com/user/claraparda#p/u/10/_BkLZyIwHVU
MAJA (Olha Ulfheim com interesse)- É mesmo verdade que o senhor é caçador de ursos?
ULFHEIM (senta-se na mesa vizinha, mais próximo do Hotel) Os ursos são os meus preferidos, minha Senhora, mas eu não dispenso nenhuma caça que se atravesse no meu caminho: águias, lobos, mulheres, alces, renas - tudo o que seja jovem, vivo e de sangue quente. (Tira do bolso uma garrafa de metal e bebe de um trago.)
MAJA (olha para ele atentamente) Mas prefere os ursos?
ULFHEIM Prefiro. Com eles, a gente sempre se pode safar rapidamente usando uma faca. (Com um leve sorriso:) Sabe, minha senhora, o seu marido e eu trabalhamos com materiais duros. Imagino que ele lute com os blocos de mármore como eu luto com os músculos tensos e pulsantes dos ursos. No fim, nós os dois obtemos o melhor do nosso material - subjugamo-lo e dominamo-lo. Não desistimos até o termos conquistado, pouco importa o quanto ele resista.
RUBEK (pensativo) Há uma boa dose de verdade no que está a dizer.
ULFHEIM Sim, porque tenho a certeza de que a pedra também tem por que lutar. Está morta, mas resistirá com bravura antes de se render à vida através do cinzel. Exactamente como um urso quando alguém vai e o espicaça para fora da toca.
MAJA O senhor vai agora para a floresta caçar?
ULFHEIM Vou para as altas montanhas. Acho que a Senhora nunca esteve nas altas montanhas; esteve, minha Senhora?
MAJA Não, nunca.
ULFHEIM Com mil demónios: tem que ir este Verão! Eu ficaria feliz por vos levar comigo.
MAJA Obrigada, mas o Rubek planeou uma viagem por mar este Verão.
RUBEK Subir o litoral e costear as ilhas.
ULFHEIM Argh! Por que diabo é que se quer ir enfiar nesses esgotos doentios? Pense! Chapinhar na água da chuva - eu diria mesmo água das fossas, de esgoto!
MAJA Estás a ver Rubek, estás a ouvir?
ULFHEIM Não, vocês deviam era subir comigo à montanha! Não há lá ninguém - é limpo. Não imaginam o que isso significa para mim. Mas uma rapariga delicada como a Senhora...
Henrik Ibsen, Peças escolhidas 1 - Quando nós os Mortos despertamos , p.26 e 27, Livros Cotovia, Lisboa, 2006
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