Vladimir Kush

Vladimir KUSH, Ripples on the Ocean, (Ondulações no Oceano)

Rumi

A vela do navio do ser humano é a fé.
Quando há uma vela, o vento pode levá-lo
A um lugar após outro de poder e maravilha.
Sem vela, todas as palavras são ventos.

Jalāl-ad-Dīn Muhammad RUMI




quarta-feira, 15 de junho de 2011

a filosofia e o jornalista

A FILOSOFIA E O JORNALISTA
ou o consenso medíocre de publicitar

Carlos H. do C. Silva (Docente da UCP)

Como estamos longe da atitude do artista renascente a esconder a sua descoberta, a fazer da sua verdade segredo e sempre esforço e prova para os que a desejarem aceder! Um tesouro que, como na parábola evangélica, alguém descobre num terreno, enterrando-o de seguida, para depois ir comprar esse terreno... (Mt 13, 44) ou aquela evidência de que, mesmo no mais patente, é o latente que se mostra (naquele sentido de verdade, em grego alétheia, como a-"não" + letho "oculto", donde "desocultação", revelação... cf. Heidegger). Afinal, a compreensão de que faz parte da situação, até do muito que se pretende comunicar, essa "natureza que ama esconder-se" (Heraclito), esse pudor também de alguém que assim pense.

Será a máscara da linguagem desculpada tantas vezes a partir de outra sua especular e narcísica imagem, quando se diz que o pensamento é íntimo e em nome de subjectivismos, solipsismos ou outros "autismos" se remete a prova de racionalidade e de comunicabilidade do que se diz para algum esconso de memória (St. Agostinho) ou de interioridade.

No entanto, sem esta batota de permutação de máscara (mudando de personalidade até em heteronímia...) ou de linguagem (em 'tentação' de sucessiva meta-linguagem...como se marcou desde a meta-lógica de Gödel...) fica-se na momentânea desnuda evidência semelhante ao que afirmou o monge trapista, Thomas Merton, quando reflecte sobre o simbólico 'sacramental' do que será 'a comunhão para além de todas as palavras', por contraste com o comunicar o já comum, 'de todos e de ninguém'. A tal via oculta ou do pudor que nada tem a ver com segredinhos de intimidade refere a própria significação 'que mostra assim o sentido, sem o poder declarar' (Wittgenstein), ou que esgota a sua condição semiótica, de sinal indicativo justamente levando à performance ou à realização disso que se apontou.

O culto da palavra (que 'nunca é a coisa', como repete Krishnamurti) deriva da postura retórica e lógica que se dogmatiza depois politicamente numa certa representação da realidade: menos o meta-físico ressalto para um ver e um ser diverso, do que a arquitectura mental a partir de uma gramática filosófica.

Fica mais e mais esquecido o aforismo heraclitiano de que "o oráculo de Delfos nem declara nem esconde, mas apenas indica", fazendo-se do sinal uma significação inteira, e da vida aludida, uma vida conversada até à exaustão taxinómica, legal, até literária..., tal a azáfama de se ter de falar (a Gerede, o "falatório"...; Heidegger), talvez como quem 'assobia no escuro'..., mas por certo naquela mínima e peculiar função rética ou "de contacto" que tem a linguagem (Jakobson). Já não um dizer prenhe de realidade, nem sequer a fábula da cidade dos entretenimentos culturais e morais, apenas a comunicação social no preventivo de uma estratégia pós-traumática (Philippe Breton), após a catástrofe de guerras apocalípticas e do por demais rasgado de uma retórica a desoras.

Se o jornalista derivado do escritor, ou seu parente, cumpria desde a ideologia das Luzes o ritmo do progresso não só pela informação agora mais generalizada, mas também o ideal pedagogista de uma função de educação democrática cada vez mais alargada, tanto a complexidade e alteração técnica dos meios de comunicar, como a nova voragem política de influenciar as massas humanas fez dos media um modelo de poder (hoje dito o 4º poder). E o que está em causa nem sequer é uma filosofia social, como psicologia de massas, como um aproveitar a ingénua curiosidade ou a perversa coscuvilhice para semear a diária necessidade de saber novidades, de estar mais informado, de capitalizar proveitos excluindo, em nome desta publicidade, outra inteligência da vida que não passe pela «opinião pública». Trata-se antes de reflectir sobre o modo acrítico e progressivamente passivo com que o gigantismo da influência, do jornalismo e hoje dos media, em especial dos áudio-visuais, vai constituindo o 'filme' da realidade (a "sociedade espectáculo" como reconheceu Guy Debord...). Obrigando-se todos a 'verem' o mesmo, ou quase, e afirmando-se retoricamente como «opinião pública» aquilo que, afinal, deriva em grande parte dos opinion makers e dos interesses, hoje sobretudo económicos, que pretendem 'vender', seja produtos publicitados, seja uma política, uma religião, afinal uma moral (seja da telenovela ou do futebol obrigatório...)

A denúncia desta alienação, até desta compulsividade de estabelecer consensos, de garantir um nível médio de informação que se crê comunicável só porque replicada em termos das mesmas fórmulas, de uma estatística de resultados assim convincentes..., já por demais foi feita sobretudo em termos humanísticos ou de valores a defender (vejam-se as 'deontologias' as legislações do jornalismo, as 'éticas' da comunicação social, etc.). No entanto, não tem sido essa reserva moral, nem uma filosofia sequer da linguagem, a mais ter êxito no policiamento desse alastramento da máscara do comunicador social a toda a sociedade.

Aliás, as transformações tecnológicas dos meios de comunicação (desde o ritmo da rádio e da televisão, ao vídeo e ao telemóvel, à internet e à 'realidade virtual' ...) trouxe ressaltos de avanço ou de mutação que tornaram obsoletas muitas das referências quer da moral da notícia escrita, quer da lógica da análise dos argumentos na racionalidade linear do texto. A possibilidade de cada um com a sua câmara de vídeo do telemóvel (ou de outros artefactos que aí venham...) poder também a seu modo ser 'jornalista' fazendo a notícia; ou a grande liberdade e globalização de uma memória tão extensa quanto a da net, permitindo compor os menus da própria informação, já longe das tutelas dos opinion makers encartados... - trazem consigo a oportunidade para diversa inteligência filosófica.

Trata-se de interrogar não a partir de um parti pris do humano ("demasiado humano"), mas de equacionar até por essa nova linguagem sobretudo icónica, de imagens (um outro cinema pensante...) e gestos em que a "realidade" se reinventa. Filosofia que não se fique pela teoria do consenso ou outra função sucedânea do que nas linguagens fica por dizer, mas ouse aprofundar a moderna instrumentação dos sentidos além da obsessiva tutela do lógos, também como palavra, para perceber que nesse 'comunicar tudo em toda a parte e a todo o momento' não é só a utopia (Ph. Breton) de uma escala em que tal 'sistema nervoso' do planeta nada tem a ver "comigo", mas há um intersticial desenho, uma poética para se preservar outro criativo uso dos media.

Uma espécie de 'dar a César o que é de César...', ou seja, devolver para a ordem computatorial ou do pensar mecânico o que cada vez mais nos liberte dessa tarefa havendo quem assim "pense por nós", que a inteligência advém num não-pensar, mas num ver, uma directa evidência. E se de futuro advier, como cada vez é mais provável, uma forma de "psicografar" o pensamento e o transmitir de 'cérebro' a 'cérebro', como hoje de 'computador' a 'computador'..., o emprego dos jornalistas e de toda esta indústria de jogo de máscaras pós-babélico terá os seus dias contados...

E, já agora: "dar... a Deus o que é de Deus", que é como quem diz, não deixar de atender ao que no agora (o Jetztzeit, o "tempo de já" ou "emergência temporal" de Walter Benjamin) não é mera oportunidade (e menos sensacionalismo inactual), ao que no vero comungar da vida se faz sinal do sempre irredutível ao ritmo pretérito do já sabido (Krishnamurti: «Freedom from the Known»), libertando-nos da autómata "sociedade do conhecimento" e do seu escravizante jornalismo de médios conformismos (replicada aurea mediocritas...), para escutar o que na própria informação é in-forme e demanda uma filosofia de vida. Assim, face a este sagrado do novo, se o que assim é contemplativo se juntar "á triunfante multidão mentecapta dos publicitários e dos engenheiros de opinião, então nada mais nos restará senão a loucura total." (Th. Merton).

Revista CAIS, #120, Junho 2007, pp. 20 e 21
http://www.cais.pt/

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