Vladimir Kush

Vladimir KUSH, Ripples on the Ocean, (Ondulações no Oceano)

Rumi

A vela do navio do ser humano é a fé.
Quando há uma vela, o vento pode levá-lo
A um lugar após outro de poder e maravilha.
Sem vela, todas as palavras são ventos.

Jalāl-ad-Dīn Muhammad RUMI




quarta-feira, 20 de abril de 2011

o que me rodeia cantando ou me cerca florescendo

De "A Águia", nº1, Porto, 1 de Dezembro, 1910
Edição digitalizada de Al-Barzalh, 2010

A ortografia é a original (a não ser que a força do hábito me tenha por vezes cegado para as diferenças):

CARTA PERDIDA
   Sim, dizes bem, eu não te sei amar! Porque saber amar - não é assim? - é ter medida nos transportes, calma no desejo, uma moderação cheia de paciência e de umildade, uma parcimónia em todos os arranques e em todos os ardores. Saber amar é saber limitar o amor a um quarto de ora de efusão; saber amar é saber restrinjir-se.
   Não, eu não te sei amar!... Sinto fogo nas veias quando me enlaças ao peito, sufoca-me uma ância de te possuir in aeterno, de fazer do teu corpo uma posse ininterrupta...
   Deperto e de lonje, sinto-te em mim constante, soberana rainha, senhora dominadora. Desde que te amo sei que a ausência é uma palavra vã. Não á maneira de estar sózinho. Guardo-te nas minhas veias, na espessura das minhas artérias, no fundo do meu coração. Tenho-te sempre presente em mim mesmo, como se o meu ser se tivesse imbebido do teu ser.
   Surpreendo-me a lembrar palavras tuas, a comover-me com a memória de tais palavras, numa embriaguez de vinho velho. A minha vida é um éco da tua.
   De noite, na cama, penso na tua boca e vejo-a, nítidamente a vejo, estendendo para mim os seus lábios sensuais. E penso então: A boca dela tem uma frescura tão grande que me parece um jardim com degraus de mármore e todo regado e embebido de orvalho.
   E dentro da minh'alma, da minha pobre alma atormentada, impera, soberana, iniludível, vitoriosa, absoluta, a obsessão da tua boca!
   Sim, dizes bem, eu não te sei amar.
   Amo-te exajeradamente, profundamente, como se ama o sangue das nossas veias e o ritmo da nossa respiração. É uma sede exclusiva. E em todo este amor único aplico a minha ignorância selvajem, a minha espontaneidade injénita, a minha sede voraz de te beijar a carne, de fazer minha com os meus beijos a tua carne - a tua carne de seda e de mármore...
   Quando escrevo as minhas cartas e quando as releio, com os olhos num fulgor de duas estrelas novas, e quando penso comigo mesmo que vão ser agasalhadas no teu seio, que vão aninhar-se entre essas duas redondas taças que o ardor das minhas palavras faz altear e crescer, como um copo cheio de espuma, sinto nelas - nas minhas sinceras, nas minhas desordenadas cartas - o calor vivo do teu corpo e antecipação feliz dos meus beijos. Quasi que as amo, como aos teus braços, e que as beijo, como ás tuas divinas mãos... Ligo tão estreitamente e duma maneira tão nítidamente e tão implacávelmente material o facto de escrever as minhas cartas e a lembrança que vão ser recebidas no teu seio, que sinto ao escrevê-las toda a comoção sensual e toda a olímpica doçura, que é sentir arfar, confessadamente, debaixo dos meus dedos, essas duas colinas de carne branca num estremecimento de montanha sensível.
   E quando te vais, depois de uma entrevista apressada, no nosso quarto côr de malva, deitando-me de lonje o teu último adeus, ou sorvendo na minha bôca o meu último beijo, fica ainda no ar o teu sorriso, o ardor do teu olhar, o teu perfume, toda a suave transcendência do teu ser. Parece que os objectos tomaram alguma coisa de ti e que se banharam na tua alma. Sinto-os diferentes, com uma beleza imanente, como ensopados numa claridade nova. E tão impregnado sinto o ar da tua pessoa, que tomo consciência da tua volatilidade.
   Nas paisagens que contemplo durante o dia, lèguas distantes de ti, nas estrêlas que palpitam no céu num abrasamento orijinal, no que me rodeia cantando ou que me cerca florescendo, és tu que eu vejo, tu que eu ligo a todas as coisas, tu que eu caso com todas as armonias do Universo, tu que eu contemplo em tudo e admiro em tudo. E o encanto - o ambiente encanto que me enche de fervor - é o teu encanto, o teu único encanto que espalho pelas coisas e que os meus olhos comovidos diluem no Universo.
   Sim, dizes bem, eu não te sei amar... Pois se eu amo em ti todo o mundo, não te estou traindo sempre? e é traindo mais que se ama mais?
   Queres saber? ontem passei pela tua porta só para sentir a tua prossimidade. Sabia que não chegarias á janela e que não poderia ver-te. Mas que me importava? não me ia eu sentir na zona da tua respiração, viver por momentos na tua ambiência? E fui. As janelas estavam fechadas e só numa descortinei uma luz mortiça, muito fraca, uma luz de lamparina alumiando imajens. A suposição de que estivesses ajoelhada diante daquela imajem de Cristo que possuis no teu quarto, tão artística e tão fina, deu-me vontade de ajoelhar também sobre as pedras úmidas, desde que ajoelhar é confessar à Vida que a nossa alma está cheia de amor.
   De repente vi passar um vulto e pensei que fôsses tu. E essa ideia deu-me um prazer tão grande como se tu tivesses passado na minha própria alma.
   Fiquei assim muito tempo olhando a janela e adivinhando-te. Na rua não avia viv'alma; caía uma chuvinha meúda, lenta, umectante e teimosa; no ar transparecia apenas um murmúrio de coisas distantes - ruídos de carros ao largo, imprecações lonjínquas e de quando em quando um latido triste... e a tua casa, entre a chuva renitente, parecia amortalhada num silêncio pesado e numa treva de morte. Mas que importava, se eu sabia que tu estavas , e que o ar que respirava cá fora talvez te tivesse já banhado os pulmões e deles tivesse saído mais puro, mais animador de vida, mais digno de ser respirado!
   Assim fiquei muito tempo, encostado a uma parede, surpreendendo o teu vulto em todas as coisas próssimas... Sobre mim caía uma chuvinha meúda, insistente, e os pontos brilhantes das luzes, no espaço úmido, lembravam olhos lânguidos, molhados, chorando um choro triste. Mas no meu coração só havia uma grande satisfação platónica e a consciência da tua prossimidade.
   Mas de repente assaltou-me a cruciante ideia de que tudo tinha sido sonho... e senti a necessidade impreterível de me certificar, de te ter novamente nos meus braços, de saber que fui bem eu que te possuí, e não a imajem do meu eu cheio da tua imajem. Por vezes tenho destas dúvidas crueis. E pergunto a mim mesmo: Teria sido uma ilusão? Meu Deus! Como é triste saber que a prova tem de ficar lonjínqua e que ainda tenho que duvidar!
   Se ouvesse uma maneira de me fundir contigo, de formar contigo um outro ego, um ser com individualidade própria, se por uma reacção das nossas vontades, dos nossos desejos, dos nossos ardentes amores, eu me pudesse combinar contigo! Sabes daquelas reacções em que dois corpos outrora separados, desconhecidos um do outro, seguindo cada qual o seu caminho no Universo, se encontram de repente, acham um destino comum e formam uma nova fonte de enerjia, libertando um calor enorme do seu abraço absorvente e criador? Eu queria esse abraço fundente, penetrante, exotérmico, sentir-me eu em ti e sentir-me ambos num só! Que supremo orgulho para a Matéria, formarmos o Cáos com o nosso abraço, anularmos o nosso eu na integridade da nossa posse!
   Olha, ás vezes, perto do teu corpo, o mais perto que pode ser, sinto obsessões, atracções dum abismo incognoscível - sinto desejos de me perder em ti...
   E não és tu, em todo o caso, a mulher que eu criei? Não me deve orgulhar o poder criador?
   Sim, tu és a mulher que eu tornei diferente, ao sôpro quente da minha paixão; aquela que eu redimi e conquistei; aquela que é minha, minha não só no acto fisiológico do amor, mas nas suas entranhas e no seu coração.
   Fui eu que te fiz, mais de que teu pai e de que tua mãe. Tua mãe trousse-te no seio; eu fiz mais; penetrei a tua vida na minha. Animei-te do fogo sagrado. Modifiquei-te. Tornei-te forte. Dei-te a corajem de te opores. Dei-te o mássimo orgulho. Dei-te o supremo desprêzo. Ensinei-te a rir e a desprezar. Ensinei-te a ser forte na tua pureza, e a ser grande na tua bondade. Dei aço inquebrantável à tua alma luminosa de diamante. Foi uma mulher nova, soberana, esplêndida, olímpica, que eu criei.
   Sim, dizes bem, eu não te sei amar!
   És obra minha, não devo adorar a minha obra. Seria vaidade. Seria pecado mortal. Seria mais do que vaidade - seria um incesto...
   Mas vem, vem! Eu quero pôr-te com olheiras fundas. Como deves ficar bem com olheiras. Serão alos d'astros nos teus olhos astrais. Vem, vem! Eu quero ver-te com os lábios rôxos. Como te devem ficar bem os lábios rôxos! Imajina como serias bela, com os teus lábios da côr das violetas... Vem, que eu quero extenuar-te - quero ver como tu deves ficar linda depois de morta...
   O quarto já está preparado. No jarro ha ja as flores que tu amas. Tenho versos novos para te ler. A cama já está aberta. E parece dizer: Eu espero por ela!
   Vem, vem, minha amada... Esperaste cinco meses, dirás tu, também podes esperar mais uma noite... Mas já te disse uma vez - lembraste? - naquele dia em que cheguei do Algarve: «Cinco meses passam depressa, mas cinco minutos não.»
   Vem! vem! vem!
   É ser ezijente, não é, amor?
   É ser sacrílego, ser incestuoso, ser o que tu quiseres, não é certo?
   É amar muito, desejar muito, adorar muito, não é verdade?
   Ah! é que tu compreendes - eu não sei, eu não te posso amar... mais.

Raul Proença

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