Era uma vez uma velha mulher que se dirigia do campo à cidade de Amã para visitar o seu neto. Era verão, e no encalorado e poeirento caminho encontrou-se com um homem de semblante cansado e ao mesmo tempo sinistro, que se cobria com um capote negro.
"Bom dia", disse a mulher, porque não tinha nada melhor para dizer e as pessoas do campo sempre se cumprimentam entre si.
"E um mau dia para a senhora!", respondeu o homem.
"Que modo bem educado de se falar com as pessoas!" Disse a velha senhora. "Que tipo de homem é você para falar assim aos filhos de Adão?".
"Eu sou Lúcifer! E odeio os descendentes de Adão".
A velha mulher não ficou nem um pouco assustada.
"E por que você está a caminho da cidade grande?" - perguntou a velha.
"Oh, tem muitas coisas que posso fazer num lugar assim". Disse o diabo.
"Você não parece tão diabo assim e creio que posso igualar qualquer coisa que você faça, a qualquer hora".
"Muito bem, eu lhe darei três dias em Amã e se você puder fazer coisas piores do que eu, ai então deixarei a cidade tranqüila pelo resto dos meus dias".
Assim fecharam o trato e os dois chegaram juntos à cidade.
"Quando vai começar"? Perguntou o diabo, porque estava ansioso para ver umas maldades.
"Começarei logo, e você pode me observar, supondo que possa ficar invisível".
"Assim"? Perguntou o diabo.
E a velha se deu conta que o diabo tinha desaparecido de sua vista, ainda que pudesse sentir seu hálito quente no pescoço.
"Agora, mãos a obra", disse ele asperamente.
A velha dirigiu-se à tenda de um dos maiores comerciantes de tecidos finos da cidade e sentou-se na entrada, pedindo ao comerciante que lhe mostrasse alguma peça de seda realmente boa.
"Tem que ser algo verdadeiramente insólito. Meu neto está enamorado de uma certa mulher casada e quer fazer-lhe um presente de que ela nunca se esqueça, de forma a abrandar o seu coração. Ela disse que só se entregará a ele se tiver uma peça da mais formosa seda que se possa encontrar".
"Para que a queres não é assunto meu, de modo que, por favor, não me contes os detalhe sórdidos", replicou o homem. "Mas acontece que tenho aqui uma peça do mais fino tecido do mundo. Até outro dia havia duas peças. Então vendi uma para o Palácio Real, de forma que podes imaginar a qualidade e formosura do tecido".
Enquanto examinava o corte de seda a velha disse:
"É um tecido muito caro e é bem possível que o compre. Mas, como é que não me estás tratando com o respeito que é devido a um cliente valioso?"
"Que queres dizer?", perguntou o comerciante.
"Ao menos deverias pedir um narguilé para mim, de maneira que eu possa fumar enquanto me decido"...
O mercador mandou buscar imediatamente um narguilé com carvão ardente no recipiente. Também colocou próximo à velha um prato de pastéis de mel, 'baklavas'.
Murmurando para si a velha manuseou o tecido, comeu os pastéis e, entre uma coisa e outra, deu umas tragadas no narguilé. De repente o comerciante percebeu consternado que ela havia passado um pouco de mel de seus dedos para o valioso tecido e, pior ainda, inclinado o cachimbo permitindo que uma brasa caísse na seda, fazendo um buraco na mesma.
"Ai, estúpida mulher!", exclamou o mercador. "Estás arruinando o tecido"!
"De modo algum. Tudo o que tenho a fazer é cortá-lo de modo certo e assim eliminar a mancha e o buraco, porque vou comprá-lo de qualquer maneira. Quanto disseste que valia"?
"Cem dinares", disse ele, esperando fechar negócio em cinqüenta, mas a velha aceitou imediatamente sem regatear, pagou-lhe em dinheiro e se foi da tenda.
Quando descia a rua o diabo sussurrou ao seu lado:
"Eu não chamaria a isso um truque. É verdade que você lhe deu um pequeno susto, mas lhe pagou muito e, ele pensa que você é uma tola. Ele é mais diabo que você"!
"Silêncio!", ciciou a velha, "e tenha um pouco de paciência, por favor. Veja o que vou fazer agora."
Dizendo isso, a velha começou a perguntar as pessoas em um café até conseguir o endereço da casa do mercador de tecidos.
Era uma casa grande e de aparência opulenta. A velha se deteve ali, salmodiando orações, e logo chamou à porta.
A mulher do comerciante veio atender e perguntou:
"Quem está ai e o que deseja?"
"Que a paz esteja contigo, generosa dama", disse a velha dirigindo-se à janela, "sou apenas uma pobre mulher do campo que veio visitar o seu filho. Encontro-me aqui na rua bem na hora das minhas orações especiais e não posso achar um lugar tranqüilo e limpo para recitá-las".
A esposa do comerciante, convidou a piedosa mulher a entrar, conduzindo-a até uma espaçosa sala no andar térreo.
"Generosa mulher, como último favor, te peço um tapete de oração em que possa me ajoelhar".
A esposa do comerciante procurou ao redor, voltou com o 'sajjadah' de seu esposo e o entregou à velha.
A velha fingia dizer as orações enquanto a mulher do comerciante se retirava da sala. Então, a velha enrolou o tapete junto com o tecido que havia comprado e o devolveu com mil palavras e gestos de agradecimento e humildade.
Ao sair da casa o diabo novamente lhe perguntou, irritado, "que tipo de jogo é esse?", a velha respondeu do mesmo modo que antes.
Quando o comerciante voltou para casa à noite e pegou seu tapete para fazer as suas orações, a peça de tecido caiu. Tinha a mesma marca e o mesmo buraco daquela que tinha sido vendida à velha mulher. A peça, ele lembrava, era um presente para uma mulher casada que, em troca, se entregaria ao seu neto...
Sua própria esposa! O comerciante arde em fúria, enquanto o diabo o contemplava, invisível, ele expulsou sua mulher de casa, recusando-se a escutar qualquer coisa que ela dissesse.
"Isto está melhor!", ria para si o diabo.
A velha seguia a perplexa esposa para ver aonde ela ia e, viu que corria para casa de sua prima, onde se jogou sobre uma cama soluçando amargamente e recusando-se a dar qualquer explicação a quem quer que fosse.
Na manhã seguinte a velha foi ver seu neto, um robusto jovem luxurioso, que não era melhor do que parecia ser.
"Vem, meu querido e formoso jovem", vou te apresentar uma dama bela e inteligente que está solitária e perplexa..."
Ela levou o jovem até a casa onde a esposa do comerciante estava descansando e aproveitando-se da ansiedade e confusão da dama, insistiu para que os dois permanecessem juntos. Tal era a perplexidade de ambos que simplesmente se sentaram no aposento olhando um para o outro, como se houvessem sido hipnotizados pela velha.
A velha bruxa correu então à tenda do comerciante. Logo que a avistou ele começou a soluçar e golpear o peito, gritando:
"Oh, mensageira da má sorte! Por que me escolheste para ser o instrumento de sedução da minha própria esposa, por meio do teu neto infernal e mal-nascido? Por que regressaste para me atormentar? Vá embora antes que eu te mate! E ainda disse muito mais no mesmo estilo.
A velha mulher se manteve firme até que o comerciante ficou sem fôlego e, então disse:
"Oh rei dos comerciantes! Realmente não tenho ideia do motivo de tuas palavras. A única coisa que posso dizer é que estou aqui para te pedir a devolução da minha seda, que parece deixei cair por um descuido em tua casa. Mas, não há ninguém lá".
O diabo começou resfolegar na orelha da velha, quando escutou isso, sufocando de riso.
"Que?! Queres dizer que não era minha esposa que tinha de ser seduzida por meio da seda?".
"Claro que não ! O que aconteceu é que, por casualidade, encontrei tua casa quando estava procurando um lugar para rezar e, por negligência, deixei o tecido ali..."
Quase fora de si com o que ainda lhe restava de sua fúria, com pesar e angustia pela injustiça que havia cometido contra sua esposa, o mercador exclamou:
"Oh, se eu pudesse fazer regressar a minha amada esposa!"
"Bem, pode ser que eu seja capaz de te ajudar nisto."
"Se pudesses fazê-la regressar, amável mulher, eu te daria mil dinares de ouro!
"Feito!", exclamou a velha bruxa e saiu precipitadamente da tenda.
"Não me diga que vai fazer um favor a alguém sua velha doida", sussurrou o diabo no seu ouvido.
"Afaste-se de mim, estúpido, deixa que uma verdadeira especialista possa fazer o seu trabalho!", guinchou a bruxa, enquanto um ar de total astúcia se espalhou sobre o seu rosto.
O diabo a seguiu furtivamente quando ela se dirigiu à prisão onde seu neto e a esposa do comerciante estavam detidos.
Assim que avistou o carcereiro na porta da prisão, a velha começou um jogo de astúcia e discussão.
"Oh vós, o mais nobre dos guardiães da justiça do rei! E pensar que na minha idade fui levada a isto... Mas, quem sabe, bom senhor, amável e ilustre cavalheiro, vós sejais capaz de me ajudar..."
A velha mostrou um dinar de ouro e, o carcereiro começou a olhá-la com maior atenção.
"O que queres?", perguntou asperamente.
"Somente que me seja permitida a entrada por alguns momentos para ver o meu neto, que foi, com certeza, justamente preso e entregue a vosso cargo, bravo defensor da justiça!".
"Bem, se tiveres outra moeda igual a esta quem sabe se posso arranjar alguma coisa"
Rápido como um raio, a velha lhe passou duas peças de ouro e o carcereiro a deixou entrar.
Assim que chegou ao calabouço onde o par de acusados estavam presos em celas contíguas, a velha se dirigiu ao lugar onde se encontrava a esposa do comerciante e destrancou a porta.
"Apressa-te, pega o meu manto e o meu véu e dá-me os teus, sai da prisão fingindo que sou eu e reúne-te ao teu esposo, isto é, se estás disposta a me recompensar por te haver salvo e fazer com que ele te perdoe".
"Tenho mil peças de ouro em casa. Isto será bastante?".
"Muito bem , isto será bastante, mas te advirto de que não voltes atrás na tua palavra, ou terei de dizer ao mercador que no fim de tudo eras realmente culpada", ameaçou a velha.
Desse modo a mulher do comerciante colocou as roupas da velha bruxa, que se vestiu como a jovem mulher. Então ela e seu neto ficaram no calabouço enquanto a mulher se apressava a regressar para casa, onde encontrou seu esposo, que se encheu de alegria.
Nessa mesma tarde, de acordo com a lei, o magistrado examinador visitou o cárcere, averiguando se havia motivo verdadeiro para a prisão dos detidos. Quando chegou em frente à cela onde se encontrava a velha, perguntou:
"Por que prenderam estas pessoas?"
"Foram presas sob acusação imoralidade, senhor juiz."
A velha retirou o véu e choramingou:
"Nobre juiz, sou uma mulher de 90 anos de idade e este é o meu neto, que não tem mais do que 16 anos. Aqui estão os papéis para prová-lo. Estávamos sentados juntos, conversando inocentemente, quando algum infiel nos denunciou à polícia com esta acusação absurda. por favor, nobre senhor, ordene nossa libertação agora mesmo, porque já sofremos bastante."
O magistrado, furioso, voltou-se para o carcereiro e o policial encarregado do caso e gritou:
"É este o modo pelo qual a justiça é feita em nosso país? Libertem está anciã e o seu jovem neto imediatamente! E em seguida, disse à sua escolta: "Dêem dez chibatadas no carcereiro e no policial!"
Quando a velha mulher e o seu neto estavam se afastando da prisão, encontraram o diabo.
"Estou indo, porque depois de ver tal actuação sei que não posso competir com você!"
O diabo abriu suas asas e voou de volta a jehennúm, a morada infernal.
Esta é a razão pela qual não se vê maldade em Amã, já que a velha mulher não se dispôs a tentar novamente.
Retirado do livro “Histórias da Tradição Sufi” - Edições Dervish – 1993 – Instituto Tarika
O Diabo e a Velha (ligeiramente alterado, sobretudo a grafia do nome da cidade, que foi alterada para Amã)