Vladimir Kush

Vladimir KUSH, Ripples on the Ocean, (Ondulações no Oceano)

Rumi

A vela do navio do ser humano é a fé.
Quando há uma vela, o vento pode levá-lo
A um lugar após outro de poder e maravilha.
Sem vela, todas as palavras são ventos.

Jalāl-ad-Dīn Muhammad RUMI




sábado, 8 de setembro de 2012

sem dar por isso

«Dinis - Era uma vez um homem chamado Papin. Era francês e médico. Mas não tinha jeito nem gosto para tratar os doentes. Estava sempre a cismar noutras coisas muito diferentes. E tanto tempo cismou cismou que acabou por inventar um aparelho de que ninguém ainda se tinha lembrado até então.

João - Aposto que era uma máquina para fazer andar os navios.

O Sr. Novais, rindo - O tal Papin era muito esperto. Mas olha que era preciso uma esperteza muito grande para ele inventar assim, sem mais nem menos, uma coisa tão complicada.

Dinis - O que ele inventou foi uma panela de cozer carne.

Os pequenos olharam uns para os outros e desataram a rir.

João, rindo - Olha que grande habilidade! Então ninguém sabia cozer carne ainda naquele tempo?

Dinis - Mas era uma panela especial. Imagina tu duas panelas, uma dentro da outra; na de fora deitava-se água, na de dentro punha-se a carne; depois atarraxava-se uma tampa por cima e punha-se ao lume. A água fervia, fervia. E a carne na panela de dentro ia-se cozendo... tanto e tanto até se derreter; e até os ossos se derretiam, o que nunca podia suceder se a carne estivesse dentro de água...

Rodrigo - Há uma coisa que eu não percebo. O pai diz que o tal Sr. Papin atarraxava uma tampa muito bem atarraxada na panela e que a água lá dentro fervia, fervia... Então como é que não ia tudo pelo ar?

João - Porque é que havia de ir pelo ar se não havia pólvora nem dinamite?

Rodrigo - Então eu não tenho visto lá na cozinha! Quando as panelas estão ao lume a ferver e começam a deitar fumo, principia logo a tampa aos saltinhos empurrada pela força do vapor de água e, se a cozinheira não deixa uma gretinha para o vapor se escapar, a tampa salta por aí fora.

João - Eu nunca vi nada disso. É uma invenção tua.

Rodrigo, muito corado - Não é, não, senhor. Eu vou contar uma coisa que nunca disse, mas que vou dizer agora, já que não me acreditas. Uma vez estava uma chaleira ao lume com água a ferver, a ferver. Estava muito bem tapada, mas o fumo da água saía com muita força pelo bico da chaleira. Eu fiz uma rolhinha com miolo de pão e meti-a pelo bico da chaleira e fui metendo, metendo, apertando quanto pude... por sinal que me escaldei. De repente... zás! quando eu menos esperava, saltou por aí fora a tampa da chaleira com um grande estrondo e caiu por cima do fogão, tudo isto no meio de uma fumaceira!... Larguei a fugir e nunca mais disse nada. Apanhei um susto!

Maria, rindo - Eu bem me lembro agora de a cozinheira me vir contar que tinha encontrado o bico da chaleira atafulhado de miolo de pão... Nunca soubemos quem tinha sido.

Rodrigo, corando - Se me tivessem perguntado, eu tinha dito. Ninguém me perguntou nada!

Dinis - O Rodrigo tem razão, mas o que eu não disse é que na tampa da tal panela havia uma válvula... Sabem o que é uma válvula?

Rita - É uma tampinha que entra e sai com muita facilidade, sem se fazer força nem ser preciso dar-se jeito nenhum, não é?

Dinis, rindo - Pouco mais ou menos, é. Quando o vapor de água ganhava muita força, empurrava a válvula e escapava-se. E então o Papin prendeu a essa válvula um braço de ferro com um certo peso na ponta calculado para que o vapor só pudesse empurrar a válvula quando tivesse muita força e que portanto a carne já estivesse bem cozida.

O Sr. Novais - Com a história da carne ninguém se importou muito mas aquele negócio do vapor da água e da válvula é que foi o primeiro passo para se chegar à máquina a vapor.

Rodrigo, triunfante - Então eu não disse que a máquina que vimos lá em baixo havia de ser uma coisa de lume e de água a ferver?

João - Essa é a primeira história. Agora a segunda.

Dinis - Passaram-se muitos anos. O Papin morreu e foram aparecendo vários homens curiosos e muito inteligentes, que desenvolveram a ideia do Papin e a aplicaram para usos de verdadeira utilidade. Eram já máquinas a vapor; bombas para tirar água mas muito imperfeitas. Era preciso estar ali sempre uma pessoa a abrir ora uma torneira ora outra para a máquina funcionar regularmente. Ora um dia, há dezenas de anos, estava um rapazito lá em Inglaterra chamado Potter encarregado de abrir as tais torneiras. O garoto estava maçadíssimo; ouvia lá na rua os seus companheiros a rir e a brincar, fazendo brincadeiras e jogos, e ele sem se poder tirar dali! Que havia de imaginar? Arranjou uma corda e lá atou conforme pôde uma ponta numa torneira, outra ponta na outra e prendeu a corda lá em cima numa outra peça da máquina que pelo seu próprio movimento, puxando ora um lado da corda, ora o outro ia abrindo e fechando só por si as duas torneiras. O rapaz ficou contentíssimo. Atirou com o boné ao ar em sinal de alegria deu quatro pinotes e foi ter com os seus companheiros, divertindo-se com eles todo o dia sem se lembrar mais da máquina.

O Sr. Novais - Este Potter, este garoto, sem dar por isso fez mais pela máquina a vapor do que muitos homens que se tinham morto de trabalho.

Rodrigo - Sim, eu faço ideia que depois os sábios haviam de aproveitar a descoberta da corda para evitar a maçada do empregado ali a abrir e fechar torneiras.»

Virgínia de Castro e Almeida, Céu Aberto, p. 102 a 105, Clássica Editora, Lisboa, 1988, 12ª Edição

a primeira edição foi publicada em 1907

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