Vladimir Kush

Vladimir KUSH, Ripples on the Ocean, (Ondulações no Oceano)

Rumi

A vela do navio do ser humano é a fé.
Quando há uma vela, o vento pode levá-lo
A um lugar após outro de poder e maravilha.
Sem vela, todas as palavras são ventos.

Jalāl-ad-Dīn Muhammad RUMI




terça-feira, 25 de janeiro de 2011

Ó engenho sutil para seu dano!

Por sua Ninfa, Céfalo deixava
Aurora, que por ele se perdia;
posto que dá princípio ao claro dia,
posto que as roxas flores imitava.


Ele, que a bela Prócris tanto amava
que só por ela tudo enjeitaria,
deseja de atentar se lhe acharia
tão firme fé como nele achava.


Mudado o trajo, tece o duro engano;
outro se finge, preço põe diante;
quebra-se a fé mudável, e consente.


Ó engenho sutil para seu dano!
Vede que manhas busca um cego amante
para que sempre seja descontente!

O mito que serve de motivo a este soneto e ao seguinte é este: a Aurora apaixonou-se por Céfalo, rei da Tessália, e raptou-o. Mas Céfalo estava apaixonado pela esposa, a bela Prócris, e conseguiu libertar-se da Aurora. Quis, porém, experimentar se Prócris era tão constante no amor como ele próprio o tinha sido. Para isso, disfarça-se, oferece-lhe presentes; Prócris cede, sem perceber que quem a cortejava era o marido. O último terceto evidencia a significação que Camões atribuía ao mito: a que extremos recorre um cego amante para se torturar. Os versos 10 e 11 revelam a poderosa capacidade de síntese de Camões.

Publicado pela 1ª vez em 1616.

Notas
V. 2 - Aurora - filha de Titã e da Terra; divindade mitológica que preside ao nascimento do dia.
V. 3-4 - posto que - apesar de - A intenção dos versos é a de sublinhar os encantos de Aurora; roxas - vermelhas.
V. 7 - atentar - ver, no sentido de verificar.
V. 8 - tão firme fé - tanta fidelidade.
V. 10 - preço põe diante - oferece-lhe presentes.
V. 11 - e consente - Entenda-se: e Prócris consente.

Sentindo-se tomada a bela esposa
de Céfalo, no crime consentido,
para os montes fugia do marido;
e não sei se de astuta ou vergonhosa.


Porque ele, enfim, sofrendo a dor ciosa,
de amor cego e forçoso compelido,
após ela se vai como perdido,
já perdoando a culpa criminosa.


Deita-se aos pés da Ninfa endurecida,
que do cioso engano está agravada;
já lhe pede perdão, já pede a vida.


Ó força de afeição desatinada!
Que de culpa contra ele cometida,
perdão pedia à parte que é culpada!

Luís de Camões, Lírica Completa II, Prefácio e Notas de Maria de Lurdes Saraiva, p. 129 e 130, Imprensa Nacional - Casa da Moeda, Lisboa, 1980

2 comentários:

Aurora disse...

adorei tudo
mas especialmente a capacidade de síntese

almariada disse...

sim, também gostei da capacidade de síntese :)

e de "preço põe diante" - "oferece-lhe presentes" ;)

e do quadro «L'Aurore et Céphale» do Baron Pierre-Narcisse Guérin que não conhecia !!

mas ler Camões é que ... ah !!! é sempre uma revelação, por mais vezes que já tenha lido ... e já não lia desde o ano passado :)

beijinhos