Vladimir Kush

Vladimir KUSH, Ripples on the Ocean, (Ondulações no Oceano)

Rumi

A vela do navio do ser humano é a fé.
Quando há uma vela, o vento pode levá-lo
A um lugar após outro de poder e maravilha.
Sem vela, todas as palavras são ventos.

Jalāl-ad-Dīn Muhammad RUMI




sexta-feira, 20 de agosto de 2010

ó fadas minerais

EXORCISMO PARA AS MÃES VOLTAREM DOS MONTES

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Cesse o ímpio desterro, ó Mães, e redivivo

Restaure o rito as torres das primeiras crenças!

Vossa espectral ausência foi-nos tempo perdido

Em factícias ciências.

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Fomos nós que fugimos ou vós as foragidas

De um descarnado credo? e em vagos horizontes

Do nosso sangue errais, a prantear-nos longínquas...

Ó Mães, descei dos montes!

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Estorcem-se em batalhas os campos dolorosos

E, numa correria por sonhos maus, em trânsito,

De uma guerra em guerra, somos um vaguear de autómatos

Numa névoa de sangue.

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Perdulários perdemos os nossos nomes próprios

E nas cinzas do verbo os números ensinam

A lógica mais triste de sermos uns para os outros

Motivos de chacina.

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Antes que as flores expirem numa lenta agonia,

Passe um bando de mísseis e nos leve nas garras,

De iluminar o nada a luz fique vazia

E apodreçam as águas.

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Antes que o tempo venha morrer nos nossos olhos,

Voltai do monte, ó nácar das madrugadas rústicas!

Ó Mães! Se os próprios deuses são vossos filhos pródigos,

Perdoai nossas culpas!

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Das moradas do ser éreis o muro e a telha,

Lençol tecido por mistérios femininos;

Numa inocência agrária, a lenha, o linho e a ideia

Segura dos caminhos.

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Éreis, de madrepérola, os pilares dos deuses claros,

A pureza do pão e a limpeza dos ventos.

Foi isto há tanto tempo. Para que estrela mudastes

As colunas do templo?

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Onde cantam as aves que emudeceis nos ecos?

Nascem e morrem os deuses. Só vós que os procriais

E lhes fiais os fados sois por cima dos séculos

Puramente imortais.

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Vinde, sábias de novo, inspirar os oráculos,

Expulsar dos vaticínios os restos funerários.

Apressai-vos, ó Mães! que as pestes já estão prontas

Nos nossos calendários.

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No tráfego da ira, semáforos nucleares

Já impedem o trânsito para as últimas esperanças.

Vinde, meigas e mágicas ó fadas minerais

De perdidas lembranças!

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Com a frescura da origem voltai e novamente

Brilhe o ovo de prata de que somos nascidos,

A paz entre nos sonhos; e à casta nascente

Retrocedam os rios.

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Cesse o nosso castigo, Mães, despregai da cruz

A estampa triste deste agonizar infindo.

O deus prostrado e tétrico que ensanguentou a luz

Também é vosso filho.

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Que pomba nos trará notícias do armistício,

Que rosa nos trará um perfumado rasto

Quando um deus condenado à lição do suplício

Diviniza o holocausto?

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Libertai-o e entre os deuses dai-lhe o lugar sadio

De filho humilde às vossas sentenças naturais.

Adorar só um deus é um orgulho sacrílego

Que não nos perdoais.

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Vinde fartas e férteis, claras vogais do verbo

Formosíssimas ânforas de bondade uterina!

Esconjurai, ó frutíferas!, os senhores dos ponteiros

Que marcam a chacina.

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Natália Correia, O Armistício, Col. Autores de Língua Portuguesa, Publicações Dom Quixote, Lisboa, 1985

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in: Matilde Rosa Araújo, A infância lembrada, Livros Horizonte, Lisboa, 1986

5 comentários:

Nivaldete disse...

I M E N S O!...

Aurora disse...

isto sim, é escrever!

almariada disse...

E este poema ainda não estava na net, pelo menos não o encontrei! Agora já está!

Aurora disse...

então obrigada
todos os poemas deviam estar na net.

almariada disse...

:)
este já devia estar há muito tempo!
mas não há dúvida que me deu prazer pensar que fui a primeira pessoa a pôr este poema na net ;)