Vladimir Kush

Vladimir KUSH, Ripples on the Ocean, (Ondulações no Oceano)

Rumi

A vela do navio do ser humano é a fé.
Quando há uma vela, o vento pode levá-lo
A um lugar após outro de poder e maravilha.
Sem vela, todas as palavras são ventos.

Jalāl-ad-Dīn Muhammad RUMI




terça-feira, 19 de janeiro de 2010

homens e ursos

-Na porta da igreja da minha aldeia pregaram a pata de um urso que matei na Primavera. Encontrei-o numa colina coberta de neve, virando um tronco de madeira com a pata.

-Quando foi isso?

-Há uns seis anos atrás. E cada vez que via aquela pata, tal qual a mão de um homem, só com garras compridas, seca e pregada pela palma à porta da igreja, sentia um verdadeiro prazer.

-Orgulho, não é?

-Orgulho de me lembrar do encontro com o urso na montanha, nesse começo de Primavera. Mas matar um homem, que é um homem como nós, não é coisa que me dê orgulho.

-Não se lhe pode pregar a pata na porta da igreja - disse Robert Jordan.

-Não. É uma barbaridade tão grande que nem se pode pensar nela. No entanto a mão do homem parece-se com a pata do urso.

-Também o peito do homem é igual ao peito do urso - disse Jordan. - Tirada a pele do urso, as semelhanças musculares são notáveis.

-Sim. Os ciganos acreditam que o urso é irmão do homem.

-Os Índios da América também - observou Jordan. - Quando matam um urso, pedem-lhe desculpa e perdão. Penduram-lhe a cabeça numa árvore e pedem-lhe perdão antes de se retirarem.

-Os ciganos acreditam que o urso é irmão do homem porque, tirada a pele, tudo é igual e também porque o urso bebe cerveja, gosta de música e sabe dançar.

-O mesmo pensam os índios.

-Os índios serão ciganos?

-Não, mas em relação ao urso pensam como os ciganos.

-Compreendo. Os ciganos também acham que o urso é irmão do homem porque gosta de roubar.

-Tens sangue cigano?

-Não, mas conheço-os bem. Lidei muito com eles, principalmente depois do movimento. Há muitos nas montanhas. Para os ciganos não é pecado matar fora da tribo. Eles negam que seja assim, mas é verdade.

-São como os mouros.

-Sim, mas os ciganos têm um ror de leis secretas que negam ter. A guerra tornou-os maus como dantes eram.

-Eles não compreendem as razões da guerra. Não sabem a razão porque combatemos.

-É verdade - confirmou o velho. - Só sabem que há guerra e que por isso podem matar como antigamente, sem que ninguém lhes peça contas.

-Tu já mataste alguém? - inquiriu Jordan animado pela intimidade que a escuridão favorecia e por um dia passado em comum.

-Sim, muitas vezes. Mas nunca me senti satisfeito. Para mim matar um homem é pecado. Mesmo quando são fascistas que é preciso matar. Eu, por mim, acho grandes diferenças entre um homem e um urso e não acredito nessa bruxaria dos ciganos a respeito da fraternidade com animais. Não. Eu sou contrário à matança de homens.

-E, no entanto, mataste.

-Sim. E voltarei a matar. Mas se escapar com vida hei-de fazer o possível por viver de modo a não fazer mal a ninguém, a fim de ser perdoado.

-Por quem?

-Quem é que sabe? Desde que não há Deus, nem Filho, nem Espírito Santo, quem pode perdoar? Eu não sei.

Ernest Hemingway, Por quem os sinos dobram, p. 43 e 44, Livros do Brasil, Lisboa, 2000

2 comentários:

O disse...

http://www.youtube.com/user/claraparda#p/u/10/_BkLZyIwHVU

Aurora disse...

MAJA (Olha Ulfheim com interesse)- É mesmo verdade que o senhor é caçador de ursos?

ULFHEIM (senta-se na mesa vizinha, mais próximo do Hotel) Os ursos são os meus preferidos, minha Senhora, mas eu não dispenso nenhuma caça que se atravesse no meu caminho: águias, lobos, mulheres, alces, renas - tudo o que seja jovem, vivo e de sangue quente. (Tira do bolso uma garrafa de metal e bebe de um trago.)

MAJA (olha para ele atentamente) Mas prefere os ursos?

ULFHEIM Prefiro. Com eles, a gente sempre se pode safar rapidamente usando uma faca. (Com um leve sorriso:) Sabe, minha senhora, o seu marido e eu trabalhamos com materiais duros. Imagino que ele lute com os blocos de mármore como eu luto com os músculos tensos e pulsantes dos ursos. No fim, nós os dois obtemos o melhor do nosso material - subjugamo-lo e dominamo-lo. Não desistimos até o termos conquistado, pouco importa o quanto ele resista.

RUBEK (pensativo) Há uma boa dose de verdade no que está a dizer.

ULFHEIM Sim, porque tenho a certeza de que a pedra também tem por que lutar. Está morta, mas resistirá com bravura antes de se render à vida através do cinzel. Exactamente como um urso quando alguém vai e o espicaça para fora da toca.

MAJA O senhor vai agora para a floresta caçar?

ULFHEIM Vou para as altas montanhas. Acho que a Senhora nunca esteve nas altas montanhas; esteve, minha Senhora?

MAJA Não, nunca.

ULFHEIM Com mil demónios: tem que ir este Verão! Eu ficaria feliz por vos levar comigo.

MAJA Obrigada, mas o Rubek planeou uma viagem por mar este Verão.

RUBEK Subir o litoral e costear as ilhas.

ULFHEIM Argh! Por que diabo é que se quer ir enfiar nesses esgotos doentios? Pense! Chapinhar na água da chuva - eu diria mesmo água das fossas, de esgoto!

MAJA Estás a ver Rubek, estás a ouvir?

ULFHEIM Não, vocês deviam era subir comigo à montanha! Não há lá ninguém - é limpo. Não imaginam o que isso significa para mim. Mas uma rapariga delicada como a Senhora...

Henrik Ibsen, Peças escolhidas 1 - Quando nós os Mortos despertamos , p.26 e 27, Livros Cotovia, Lisboa, 2006