Vladimir Kush

Vladimir KUSH, Ripples on the Ocean, (Ondulações no Oceano)

Rumi

A vela do navio do ser humano é a fé.
Quando há uma vela, o vento pode levá-lo
A um lugar após outro de poder e maravilha.
Sem vela, todas as palavras são ventos.

Jalāl-ad-Dīn Muhammad RUMI




segunda-feira, 30 de março de 2009

Andando sobre a água

Gravura copta na montanha: Pedro e Jesus andando sobre a água.

Coptas são os descendentes dos antigos egípcios e não são muçulmanos, são cristãos. A igreja ortodoxa copta mantém a língua egípcia antiga como língua litúrgica.

Jean François Champollion (1790-1832) aprendeu copta para poder decifrar os hieróglifos da pedra da Roseta.

sábado, 28 de março de 2009

quarta-feira, 25 de março de 2009

É preciso cantar a primavera

Há uma primavera em cada vida:

É preciso cantá-la assim florida,

Pois se Deus nos deu voz, foi p'ra cantar!

Florbela Espanca

terça-feira, 24 de março de 2009

À janela

Estar à janela, namorar à janela...

Hoje vi uma senhora à janela.

Pensei que há muito tempo que não via uma mulher à janela. (Naturalmente no inverno não é nada agradável!)

Esta senhora tinha o ar descansado de quem não tem mais nada que fazer e tinha uma almofada no parapeito e os braços apoiados sobre ela, como quem vai ficar ali muito tempo.

Os pensamentos que me ocorreram são demasiados e demasiado vagos para que os possa escrever, mas suponho que este post há-de fazer correr os vossos pensamentos, que talvez sejam os mesmos ou outros que os meus, que os da senhora à janela, que os de todas as mulheres que alguma vez estiveram, estão ou estarão à janela, que os de todas as pessoas que já viram e hão-de ver mulheres à janela.

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Algum tempo depois de escrever este post: Agora mesmo fui à janela e vi um cão - ou será uma cadela? - a olhar para mim! Está numa varanda que fica na continuação da parede e só lhe vi a cara - devia dizer o focinho? - e ficámos a ver-nos... Então pensei que me tinha esquecido que não são apenas as pessoas que vêem e pensam... ;) e vim a correr escrever mais isto!

segunda-feira, 23 de março de 2009

Quem nos liberta da aversão e do ódio

Averróis nasceu em Córdova em 1126 e morreu em Marrakech em 1198. Entre muitos outros livros escreveu o "Discurso Decisivo" para demonstrar que a liberdade de ler e interpretar os livros anteriores ao Corão, como os de Aristóteles, não é contrária à fé no livro sagrado.

Averróis afirma também que são as diferentes interpretações do Corão, que entre si se digladiam, que prejudicam a fé.

E depois de considerar todas estas divergências, escreve:

"Mas Deus indica a cada um o bom caminho e acompanha cada um em direcção a Seu amor, estabelece a concórdia no coração de todos os homens para que O reverenciem e os liberta da aversão e do ódio, por Sua graça e Sua misericórdia."

Averróis, Discurso Decisivo, tradução de Márcia Valéria M. Aguiar, p. 83, Martins Fontes, São Paulo, 2005

Quase 900 anos depois a leitura deste livro faz-nos pensar que, por mais que os homens procurem e encontrem motivos para discordar, para se perseguirem e para se combaterem, acabam sempre por se libertar da aversão e do ódio.

sábado, 21 de março de 2009

A estátua do General Gordon em Khartoum

Conta-se esta história a propósito da famosa estátua do General Gordon, montado num camelo, um dos monumentos de Khartoum. Um rapazinho de três anos gostava muito dela e, todos os dias, quando ia passear, a ama levava-o a "ver o General Gordon". Chegou o dia em que a família devia partir do Sudão e a ama levou o menino para dizer adeus ao General Gordon. Ele ficou imóvel durante muito tempo, de olhos postos na estátua, e finalmente disse: "Vou estar muito tempo sem te ver, portanto: Adeus General Gordon!" Depois olhou para a ama e disse: "Ama, quem é que está sentado às costas do General Gordon?"

sexta-feira, 20 de março de 2009

A agulha e a linha 2

"Quando enfiares uma agulha não deixes a linha parada no ar à espera da agulha; segura mas é na agulha, e enfia-lhe então a linha. É assim que fazem as mulheres. Os homens fazem o contrário."

Mark Twain, As Aventuras de Huckleberry Finn, tradução de Francisco José Tenreiro, p.88, Inquérito, Lisboa, sem data

Eis aqui as citações em inglês, tal como vêm nos ebooks gratuitos do Projecto Gutenberg:

"Bless you, child, when you set out to thread a needle don't hold the thread still and fetch the needle up to it; hold the needle still and poke the thread at it; that's the way a woman most always does, but a man always does t'other way." The Adventures of Huckleberry Finn, 1884

"He did as men have always done, and probably always will do, to the end of time--held the needle still, and tried to thrust the thread through the eye, which is the opposite of a woman's way." The Prince and the Pauper, 1882

Mark Twain terá reparado, ou alguém lhe disse, que quem sabe costurar segura a agulha quieta (na mão esquerda se for uma pessoa dextra) e enfia a linha (com a mão direita), e quem nunca costurou tenta, em geral, segurar a linha quieta (na mão esquerda, se for uma pessoa dextra) e enfiar a agulha (com a mão direita), o que é muito mais difícil. Como na sua sociedade e no seu tempo eram as mulheres que costuravam, eram elas que mantinham a agulha quieta e enfiavam a linha. Os homens, que não aprendiam a costurar, se precisavam de o fazer, tentavam em geral o processo mais difícil. Em "O Príncipe e o Pobre" é um homem que quer coser a roupa de um rapazinho, mas Mark Twain ter-se-á enganado, ao escrever o texto, acabando por confundir este assunto - talvez não percebesse de costura... ;) ou já tinha aprendido a costurar e por isso se confundiu... :) e o revisor das provas talvez também fosse um homem que não sabia enfiar uma agulha... :) Ou então, como me aconteceu a mim à primeira leitura, li o contrário do que estava escrito... mas, como achei graça, li outra vez e foi então que estranhei...

Eventualmente as leitoras de Mark Twain, ou os alfaiates ;) hão-de ter-lhe chamado a atenção e ele foi mais cuidadoso dois anos depois:

Em "As Aventuras de Huckleberry Finn" o jovem Huck veste um vestido, põe um chapéu e tenta fazer-se passar por uma rapariga. Neste papel tenta enfiar uma agulha mas a dona da casa não se deixa enganar e é descoberto porque o faz como um rapaz, isto é: como alguém que nunca o tinha feito antes. A dona da casa ensina-lhe então, correctamente, como deve fazê-lo. Mark Twain terá tido especial cuidado desta vez! ;)

Não sei se este assunto é mencionado noutros livros, de Mark Twain ou de outros autores ou autoras... :) mas consigo imaginar as dissertações de Freud sobre esta confusão de Mark Twain se tivesse dado por ela ;)

Provavelmente não era este assunto em particular que Mark Twain tinha em mente quando escreveu, no início de "As Aventuras de Huckleberry Finn", esta advertência: "PERSONS attempting to find a motive in this narrative will be prosecuted; persons attempting to find a moral in it will be banished; persons attempting to find a plot in it will be shot."

No livro que estou a ler em português não vem esta advertência, traduzo-a assim: "As PESSOAS que tentarem encontrar uma causa para esta narrativa serão processadas; as pessoas que tentarem encontrar-lhe uma moral serão banidas; as pessoas que tentarem encontrar-lhe um enredo serão mortas a tiro." ;)

quinta-feira, 19 de março de 2009

A agulha e a linha 1

"Fez o que os homens sempre fizeram e sempre hão-de fazer até à consumação dos séculos. Segurou a agulha imóvel e tentou fazer passar a linha pelo buraco, o que é exactamente o oposto do que faz uma mulher."

Mark Twain, O Príncipe e o Pobre, tradução de Domingos Monteiro, p. 101, Inquérito, Lisboa, s/ data mas anterior a 1967

terça-feira, 17 de março de 2009

O som da carroça

De tempos a tempos passa uma carroça, com rodas de madeira e aro em aço, aqui na rua que é empedrada. O som faz-me ir à janela.

Às vezes é só o senhor mas quase sempre vem acompanhado da mulher. Passam calmamente e nunca levantam os olhos para a janela do primeiro andar de onde os observo.

Quando os perco de vista olho para o quintal dos escuteiros que fica mesmo em frente e onde, por vezes, posso ver galinhas. Olho também para as árvores que são variadas. Algumas perdem as folhas no inverno, outras não, mas todas se modificam... Vejo os pássaros e os insectos que voam entre as árvores ou nelas pousam. Vejo o céu. Reparo se há ou não há vento. Hoje há.

Este bocadinho em que olho através da janela, porque o som das ferraduras e das rodas nas pedras me chamou, acontece muito de vez em quando. Cada vez que acontece lembro-me de outras vezes...

A carroça é cor-de-laranja.

segunda-feira, 16 de março de 2009

As pessoas dão nomes diferentes às coisas

-As pessoas dão nomes diferentes às coisas. Acredito sem dificuldade que notou ou ouviu alguma coisa que despertou a sua ansiedade. Acho possível, também, que não saiba o que viu ou ouviu que lhe causou essa ansiedade. Se me permite, direi que não sabe... o que sabe. Se quiser, pode chamar intuição a esse sentimento.

Agatha Christie, Poirot e o Jogo Macabro, p. 13, Livros do Brasil, Lisboa,

sexta-feira, 13 de março de 2009

A rapariga dos gansos

Era uma vez uma rainha idosa que tinha uma filha muito bela. Quando a filha cresceu, foi prometida em casamento a um príncipe que vivia muito, muito longe.

O tempo foi passando e, na altura em que a princesa devia casar e partir para esse reino distante, sua velha mãe deu-lhe um rico enxoval, compreendendo valiosa bagagem e muitos adereços de ouro e prata, brincos e pulseiras, em suma, tudo quanto devia fazer parte de um enxoval de princesa, pois gostava muito da filha. A rainha arranjou também uma aia, que deveria seguir a princesa e entregá-la ao noivo, e dois cavalos para neles fazerem a jornada. Ora acontecia que o cavalo da princesa, chamado Falada, sabia falar.

Quando se aproximou a hora da partida, a mãe dirigiu-se ao quarto e, pegando num pequeno canivete, deu um golpe nos dedos até fazê-los sangrar. Depois, colocou-lhes um lenço por baixo e, deixando que três gotas de sangue caíssem nele, entregou-o à filha, dizendo:

-Querida filha, guarda bem este lenço. Pode ser que te seja útil durante a jornada.

Despediram-se com ternura e lágrimas nos olhos. A princesa prendeu o lenço à frente do vestido, montou a cavalo e partiu rumo ao reino do seu noivo.

Depois de terem cavalgado cerca de uma hora, a princesa sentiu sede e disse à sua aia:

-Desmonta, por favor, e traz-me o meu copo de ouro cheio de água daquele riacho acolá. Apetece-me beber.

-Se tem sede - respondeu a aia -, desmonte a senhora, deite-se junto à água e beba. Não faço tenção de continuar a servi-la.

A princesa tinha tanta sede, que desceu do cavalo e curvou-se junto ao ribeiro, bebendo sem copo, pois a aia não lho dera. Enquanto bebeu, murmurou:

-Oh, meu Deus, que hei-de fazer agora?

E as três gotas de sangue responderam:

Soubesse a tua mãe, e então

de dor se lhe quebrava o coração.

Como a princesa era dócil, nada disse sobre o rude procedimento da aia, voltando calmamente a montar o seu cavalo. Andaram assim durante alguns quilómetros, mas o dia estava quente e os raios de sol incidiam sobre elas. A princesa em breve voltou a sentir sede. E, ao passarem por outro regato, como tinha já esquecido as rudes palavras da aia, pediu-lhe:

-Por favor, traz-me o meu copo de ouro cheio de água.

Desta vez a aia respondeu à ama em tom ainda mais arrogante do que anteriormente:

-Se quer beber, desmonte e beba. Não estou para ser sua criada.

E a princesa, compelida pela sede que sentia, voltou a desmontar. Ao curvar-se sobre o curso de água exclamou:

-Oh, céus, que hei-de fazer?!

E as três gotas de sangue responderam:

Soubesse a tua mãe, e então

de dor se lhe quebrava o coração.

Mas, à medida que bebia, curvada sobre a água, o lenço com as três gotas de sangue caiu-lhe do vestido e foi arrastado pela correnteza. Na sua ansiedade, a princesa nem sequer o notou, mas a aia observou-o com prazer. Sabia que, a partir desse momento, podia fazer da noiva o que quisesse, pois, ao perder as três gotas de sangue, a princesa tinha ficado fraca e sem qualquer poder.

Quando a princesa quis voltar a montar o seu cavalo, a aia exclamou: «Sou eu quem vai montar Falada. A senhora irá na minha pileca.» A isto, a princesa teve de se submeter. A seguir, a aia mandou-a despir todos os seus trajes reais e envergar os seus, e finalmente obrigou-a a jurar pelo Céu que não diria nem uma palavra sobre o assunto ao chegarem ao palácio. Se o não fizesse seria imediatamente morta. E Falada observou tudo e tudo fixou.

A aia da princesa montou Falada, e a noiva real o outro cavalo, e assim prosseguiram a jornada até, finalmente, chegarem ao palácio. Houve grande regozijo à sua chegada, e o príncipe precipitou-se para as saudar. Pensando que a aia era a sua noiva, ajudou-a a descer do cavalo, e conduziu-a pelas escadarias até à câmara real.

E, entretanto, a verdadeira princesa era deixada sozinha no pátio.

O velho Rei, que estava a ver tudo da janela, notou a jovem naquela dificuldade, e sentiu-se impressionado ao reparar como ela era gentil, suave, mesmo encantadora. Imediatamente se dirigiu à câmara real e perguntou à falsa noiva quem é que tinha trazido com ela e deixara ficar no pátio.

-Oh - respondeu a disfarçada aia. - Trouxe-a comigo para me fazer companhia na viagem. Dêem algum trabalho a essa rapariga, para ela não ficar inactiva.

Mas o velho Rei não tinha nenhum trabalho para ela, e não conseguia lembrar-se de nada, e por isso disse:

-Eu tenho um rapaz que me guarda os gansos. Ela talvez possa ajudá-lo.

Esse rapaz chama-se Curdken, e a noiva real foi designada para o assistir a guardar os gansos.

Pouco tempo depois a falsa noiva disse ao príncipe:

-Querido noivo, peço-te que me concedas um favor.

E logo ele respondeu:

-Concedê-lo-ei.

Então, faz com que matem o cavalo que me trouxe, pois ele se portou muito mal durante a viagem.

A verdade, porém, é que a aia receava que o cavalo um dia falasse e contasse como ela tinha tratado a princesa. Quando a notícia chegou aos ouvidos desta, a verdadeira princesa dirigiu-se ao carniceiro que iria matar o cavalo e, em segredo, prometeu-lhe uma moeda de ouro se ele lhe fizesse um favor. Havia na cidade um grande portão escuro, através do qual ela tinha de passar com os seus gansos, de manhã e ao entardecer. Poderia ele pendurar ali a cabeça de Falada, para que ela voltasse a vê-lo?

O homem prometeu fazer como lhe era pedido, e no dia seguinte cortou a cabeça do cavalo e pendurou-a firmemente sobre o portão da cidade.

Quando ela e Curdken conduziram o bando de gansos na manhã seguinte, ela segredou, ao passar sob o cavalo:

-Oh, Falada, és tu, tenho a certeza

e a cabeça respondeu:

E és tu quem passa, bela princesa;

soubesse a tua mãe, e então

de dor se lhe quebrava o coração.

A verdadeira princesa deixou a cidade com Curdken e levou os gansos até ao campo. E, ao chegarem ao prado onde os gansos se alimentavam, ela sentou-se e soltou o cabelo, que era de ouro puro. Curdken gostava de o ver cintilar ao sol, e sentiu desejo de lhe arrancar alguns fios.

Foi então que a princesa falou:

Vento, vento, suplico-te eu,

sopra de Curdken o velho chapéu,

faz com que corra por campos e montes

até que o meu cabelo que à brisa dança

solto e caído como água das fontes

seja penteado todo numa trança.

Um golpe de vento arremessou para longe o chapéu de Curdken, e o rapaz teve de correr atrás dele por montes e vales. Quando regressou da sua perseguição, ela tinha acabado de pentear e entrançar o cabelo, e assim ele tinha perdido a oportunidade de lhe arrancar um ou dois fios. Curdken ficou zangado, e deixou de lhe falar. Guardaram os gansos em silêncio até ao entardecer, e só então regressaram à cidade.

Na manhã seguinte, ao voltarem a passar pelo portão, a jovem disse:

-Oh, Falada, és tu, tenho a certeza

e a cabeça replicou:

E és tu quem passa, bela princesa;

soubesse a tua mãe, e então

de dor se lhe quebrava o coração.

Prosseguiram o seu caminho até chegarem ao prado, onde ela se sentou e começou a pentear o cabelo.

Curdken dirigiu-se-lhe e tentou puxar um anel de cabelo, mas ela rapidamente chamou:

Vento, vento, suplico-te eu,

sopra de Curdken o velho chapéu,

faz com que corra por campos e montes

até que o meu cabelo que à brisa dança

solto e caído como a água das fontes

seja penteado todo numa trança.

De novo um golpe de vento veio e arremessou para longe o chapéu de Curdken, obrigando-o a ir em sua perseguição. Quando ele regressou já a princesa tinha acabado de pentear a sua loura trança, e ele não conseguiu os seus objectivos. Ficaram então a guardar os gansos até entardecer.

Mas, nessa noite, após regressarem ao palácio, Curdken dirigiu-se ao velho Rei e disse-lhe:

-Recuso-me a continuar a ir guardar os gansos com essa rapariga.

-Mas por que motivo? - perguntou o Rei.

-Porque ela não fez outra coisa senão aborrecer-me durante todo o dia - replicou Curdken.

E contou então ao Rei o estranho procedimento da princesa:

-Todas as manhãs, quando passamos com os gansos pelo portão da cidade, ela diz para uma cabeça de cavalo que nele está pendurada:

-Oh, Falada, és tu, tenho a certeza

e a cabeça responde:

E és tu quem passa, bela princesa;

soubesse a tua mãe, e então

de dor se lhe quebrava o coração.

E Curdken prosseguiu, contando-lhe o que acontecera no prado para onde levavam os gansos, e como ele tinha sempre de correr em perseguição do chapéu.

O velho Rei mandou-o fazer na manhã seguinte como habitualmente. E, quando o Sol nasceu, ele próprio se colocou atrás do portão e ouviu como a rapariga saudava Falada. Depois, seguiu-a através dos campos e escondeu-se cuidadosamente atrás de uns arbustos no prado.

Em breve observou, com os seus próprios olhos, como a rapariga e o rapaz guardavam os gansos, e como, após algum tempo, a rapariga se sentou e soltou o seu longo e belo cabelo, que brilhava como ouro, e repetia:

Vento, vento, suplico-te eu,

sopra de Curdken o velho chapéu,

faz com que corra por campos e montes

até que o meu cabelo que à brisa dança

solto e caído como a água das fontes

seja penteado todo numa trança.

Nesse momento, um golpe de vento arrebatou o chapéu de Curdken, e lá teve ele de correr por montes e vales em sua perseguição, enquanto a rapariga calmamente penteava e entrançava o cabelo.

Tudo isto o velho Rei observou, tendo depois regressado ao palácio sem que eles notassem a sua presença. De noite, quando a rapariga chegou ao palácio, chamou-a de parte e perguntou-lhe por que motivo se portara daquela maneira.

-Não posso dizer-vos qual o motivo - replicou ela. - Não me atrevo a contar a ninguém as minhas desgraças, pois jurei pelos céus não o fazer, ou perderia a vida.

O velho Rei pediu-lhe, insistentemente, que lhe respondesse, mas nada conseguiu arrancar-lhe. Finalmente, disse-lhe:

-Bem, se não me queres dizer, ao menos conta os teus problemas ali ao fogão de ferro.

E afastou-se deixando-a sozinha.

A rapariga arrastou-se até ao fogão e começou a soluçar, contando todas as tristezas que lhe iam no coração.

-Aqui estou eu, abandonada por toda a gente - eu, que sou filha de um rei, e que uma falsa aia obrigou a trocar com ela as roupas, tomando o meu lugar como noiva real, enquanto eu só sirvo para guardar gansos.

Soubesse a minha mãe, e então

de dor se lhe quebrava o coração.

Mas o velho Rei fora colocar-se, lá fora, junto à chaminé do fogão, e ouviu todas as suas palavras. Penetrou de novo na sala e ordenou que lhe envergassem um traje real, em que ela ficou extraordinariamente encantadora. Em seguida, mandou chamar o filho, e revelou-lhe que tinha uma falsa noiva, que não passava de uma aia, enquanto a verdadeira noiva, que até então estivera no lugar de guardadora de gansos, estava a seu lado.

O jovem príncipe rejubilou de todo o coração ao verificar como ela era bela e ao saber como era bondosa, e logo foi preparado um grande banquete, para o qual toda a corte foi convidada. O noivo sentou-se à cabeceira da mesa, a verdadeira princesa a um dos seus lados, e a aia a outro. Esta estava tão admirada, que nem reconheceu a princesa nos seus trajes esplendorosos. Depois de todos terem comido e se mostrarem alegres e satisfeitos, o Rei pediu à falsa noiva que lhe resolvesse um problema.

-Que se deve fazer - perguntou - a uma certa pessoa que iludiu toda a gente?

E prosseguiu contando toda a história, acabando por dizer:

-Ora, que sentença deverá ser pronunciada?

A falsa noiva respondeu:

-Essa mulher deve ser metida nua num barril cheio de pregos afiados, e o barril arrastado por dois cavalos brancos através das ruas da cidade, até ela morrer.

-És tu a mulher - disse então o Rei. - Acabas de pronunciar a tua própria sentença. E assim será feito contigo.

O jovem príncipe casou com a sua verdadeira noiva, e ambos reinaram em paz e felicidade.

Jakob e Wilhelm Grimm

Os Mais Belos Contos de Fadas, Selecções do Reader's Digest, edição fac-similada da antologia de 1970, Lisboa, 1994

quarta-feira, 11 de março de 2009

Falada, a égua

No conto dos irmãos Grimm, A rapariga dos Gansos, há um cavalo que fala e se chama Falada. Conheço este conto desde criança e sempre achei que Falada era uma tradução, mas não é. No original alemão o cavalo chama-se mesmo Falada, o que é um pouco estranho porque não há outra língua, senão o português, em que Falada tenha este significado.

Se o cavalo se chama Falada é com certeza uma égua - pelo menos sempre pensei que fosse, porque se fosse macho havia de chamar-se Falado...

Aceitam-se outras ideias mas lanço aqui algumas que podem explicar este nome:

o conto é português e foi traduzido para alemão

o conto é alemão mas o nome do cavalo é português para ser exótico

o nome do cavalo não é exactamente português, a palavra Falada tem origem numa língua europeia mais antiga

Falada é uma Fada e ambas as palavras provêm da mesma raiz

Suponho que seria capaz de encontrar outras possibilidades mas para já não me ocorre mais nenhuma. Todas as sugestões são bem vindas.

terça-feira, 10 de março de 2009

Pode um relógio viajar no tempo?

Este anel é um relógio suíço que pode ter, no máximo, cem anos, mas foi encontrado por arqueólogos num túmulo chinês da dinastia Ming que, se não fosse este achado, se julgaria nunca ter sido aberto...

Ou será um relógio que viajou no tempo? ;)

segunda-feira, 9 de março de 2009

Num ápice e de todo o coração!

Era uma vez uma rapariga muito folgazã que não gostava nada de fiar. Por mais que a mãe se zangasse, não havia maneira de a obrigar a fazer aquele trabalho. Até que um dia, a mulher perdeu de tal forma a paciência, que lhe encheu a cara de bofetadas. A moça pôs-se a chorar, a gritar... Calhou passar por ali a Rainha que, ao ouvir as lamentações da rapariga, mandou parar a carruagem, entrou na casa e perguntou à mulher por que razão batia na filha, a ponto de os seus gritos se ouvirem em toda a rua. Envergonhada de ter que apregoar assim a preguiça da filha, a mulher resolveu responder à Rainha:

-Não consigo tirá-la de ao pé da roca. Só se sente bem a fiar; porém sou pobre e não posso comprar tanto linho.

-Não há nada de que eu mais goste do que ouvir o ruído da roca. Deixa vir a tua filha comigo para o palácio. Tenho linho em abundância e ela poderá fiar todo o tempo que quiser.

A mãe, toda contente, deu o seu consentimento, e a Rainha levou consigo a rapariga. Chegadas ao palácio, conduziu-a a três aposentos do primeiro andar que estavam cheios até ao tecto de magnífico linho.

-Vais fiar-me todo este linho e, quando o tiveres fiado, dar-te-ei por esposo o meu filho mais velho. Não importa que sejas pobre; uma rapariga trabalhadora leva consigo um bom dote.

A moça sentiu, dentro de si, uma grande aflição, pois não havia quem fosse capaz de fiar todo aquele linho, nem que vivesse trezentos anos e não largasse a roca de manhã até à noite.

Quando ficou sozinha, começou a chorar, e assim esteve três dias sem mexer sequer um dedo.

No fim do terceiro dia, apareceu a Rainha e estranhou não ver nada feito ainda; porém, a rapariga desculpou-se dizendo que a grande saudade que sentia, por estar longe da mãe, não a tinha deixado trabalhar.

Deu-se a Rainha por satisfeita com a desculpa, mas disse-lhe:

-Amanhã tens de começar o trabalho.

Uma vez só, a rapariga quedou-se sem saber o que fazer nem como sair de tais apuros. Em meio da sua perturbação, chegou à janela e viu aproximarem-se três mulheres: a primeira tinha um pé muito grande e chato; a segunda o lábio inferior de um tamanho descomunal, tão grande, que lhe caía sobre o peito; e a terceira um dedo polegar avultadíssimo. As três detiveram-se diante da janela e, levantando os olhos, perguntaram à moça o que é que a afligia. Contou-lhes ela as suas penas e as três mulheres ofereceram-lhe a sua ajuda.

-Se te comprometeres a convidar-nos para a boda, sem te envergonhares de nós, a tratar-nos por primas e a sentar-nos à tua mesa, fiaremos por ti todo este linho, num ápice.

-Prometo de todo o coração - respondeu a moça. - Entrem e podem, desde já, começar o trabalho.

Mandou então entrar as três estranhas mulheres e arranjou no primeiro compartimento o espaço suficiente para elas trabalharem. Imediatamente puseram mãos à obra. A primeira puxava o fio e fazia girar a roda com o pé; a segunda humedecia o fio, a terceira torcia-o, achatando-o de encontro à mesa com o polegar, e, de cada vez que fazia isto, caía no chão um monte de fios muito finos. Sempre que a moça pressentia a Rainha, escondia as fiandeiras e mostrava o linho fiado. A Rainha admirava-se e tecia grandes elogios à rapariga. Acabado o linho do primeiro aposento, passaram para o segundo, deste para o terceiro, e não tardou que findasse todo o labor. Despediram-se então as três mulheres, recomendando à rapariga:

-Agora não te esqueças da tua promessa.

Logo que a donzela mostrou à Rainha os quartos vazios e o linho todo fiado, fixou-se o dia da boda. O noivo estava encantado de ir ter uma esposa tão hábil e trabalhadeira e não se cansava de a louvar.

-Tenho três primas - disse um dia a moça -, devo-lhes alguns favores e não quero esquecer-me delas na hora da minha maior felicidade. Permiti, pois, que as convide e as sente à nossa mesa.

-E porque não as havíamos de convidar? - perguntaram a um tempo a Rainha e o filho.

Assim, no dia do casamento, lá se apresentaram as três mulheres, muito bem postas. A noiva veio logo ao seu encontro, dizendo-lhes:

-Bem-vindas sejam, minhas queridas primas!

-Apre! - exclamou o noivo. - As tuas parentes são na verdade muito feias!

E, dirigindo-se à do pé chato, perguntou-lhe:

-Porque tendes o pé tão grande?

-De fazer girar o torno.

Passou então a interrogar a segunda:

-Porque vos descai tanto o lábio?

-De tanto lamber o fio - replicou a mulher -, de tanto lamber o fio...

E à terceira:

-Ai! como tendes o polegar tão achatado!

-Foi de tanto torcer o fio - replicou ela -, foi de tanto torcer o fio...

Assustado o princípe disse à Rainha:

-Nunca mais na vida a minha linda esposa tocará numa roca.

E, com isto, terminou para a pequena o pesadelo de fiar.

Outros contos de Grimm, Tradução Livre de Salomé de Almeida, Colecção Azul, Casa do Livro Editora, Barcelos, 1964

domingo, 8 de março de 2009

Dá-me alegria

Imagens de Yashoda e Krishna.

A oração

"Hare Krishna,

Hare Krishna,

Krishna Krishna,

Hare Hare,

Hare Rama,

Hare Rama,

Rama Rama,

Hare Hare"

cujas vibrações protegem e limpam a mente, abrindo-a ao estado de espírito divino, pode ser cantada, recitada ou pensada.

sábado, 7 de março de 2009

Raízes mais profundas que o mar

"O Feiticeiro de Terramar" de Ursula K. Le Guin é um livro que li algumas vezes sempre com o mesmo fascínio. Foi sempre o meu livro preferido da colecção Argonauta.

Agora estou a ler "O Feiticeiro e a Sombra" que é o mesmo livro publicado por outra editora.

Sendo o livro magnífico que é não merece capas tão feias mas ponho-as aqui para recordar que quem vê capas não vê corações...!

Esta história passa-se num arquipélago. Tudo acontece nas ilhas e entre as ilhas.

Deixo aqui um bocadinho de texto:

"Ao enveredarem pelo lado da colina iam pensando como as suas raízes eram profundas, mais profundas que o mar, até atingirem os velhos fogos, ocultos e secretos, no âmago do mundo."

Ursula K. Le Guin, "O Feiticeiro e a Sombra", p. 63, Editorial Presença, Lisboa, Novembro, 2002

domingo, 1 de março de 2009

Zona do mistério

Nalguns mapas da ilha do Faial está assinalada a "Zona do Mistério". Fica entre a Praia do Norte e o Capelo. Aí o ambiente e a vegetação são diferentes. Mistério...

Terá sido com o acordo ortográfico de 1911 que Fayal passou a escrever-se Faial. Nessa altura Teixeira de Pascoaes observou que era o y que representava a profundidade do abysmo. O y também parece ser tão adequado à caldeira do Fayal quanto o i, sobretudo o minúsculo manuscrito, é adequado à altura e forma do Pico... ;)