Vladimir Kush

Vladimir KUSH, Ripples on the Ocean, (Ondulações no Oceano)

Rumi

A vela do navio do ser humano é a fé.
Quando há uma vela, o vento pode levá-lo
A um lugar após outro de poder e maravilha.
Sem vela, todas as palavras são ventos.

Jalāl-ad-Dīn Muhammad RUMI




sexta-feira, 13 de março de 2009

A rapariga dos gansos

Era uma vez uma rainha idosa que tinha uma filha muito bela. Quando a filha cresceu, foi prometida em casamento a um príncipe que vivia muito, muito longe.

O tempo foi passando e, na altura em que a princesa devia casar e partir para esse reino distante, sua velha mãe deu-lhe um rico enxoval, compreendendo valiosa bagagem e muitos adereços de ouro e prata, brincos e pulseiras, em suma, tudo quanto devia fazer parte de um enxoval de princesa, pois gostava muito da filha. A rainha arranjou também uma aia, que deveria seguir a princesa e entregá-la ao noivo, e dois cavalos para neles fazerem a jornada. Ora acontecia que o cavalo da princesa, chamado Falada, sabia falar.

Quando se aproximou a hora da partida, a mãe dirigiu-se ao quarto e, pegando num pequeno canivete, deu um golpe nos dedos até fazê-los sangrar. Depois, colocou-lhes um lenço por baixo e, deixando que três gotas de sangue caíssem nele, entregou-o à filha, dizendo:

-Querida filha, guarda bem este lenço. Pode ser que te seja útil durante a jornada.

Despediram-se com ternura e lágrimas nos olhos. A princesa prendeu o lenço à frente do vestido, montou a cavalo e partiu rumo ao reino do seu noivo.

Depois de terem cavalgado cerca de uma hora, a princesa sentiu sede e disse à sua aia:

-Desmonta, por favor, e traz-me o meu copo de ouro cheio de água daquele riacho acolá. Apetece-me beber.

-Se tem sede - respondeu a aia -, desmonte a senhora, deite-se junto à água e beba. Não faço tenção de continuar a servi-la.

A princesa tinha tanta sede, que desceu do cavalo e curvou-se junto ao ribeiro, bebendo sem copo, pois a aia não lho dera. Enquanto bebeu, murmurou:

-Oh, meu Deus, que hei-de fazer agora?

E as três gotas de sangue responderam:

Soubesse a tua mãe, e então

de dor se lhe quebrava o coração.

Como a princesa era dócil, nada disse sobre o rude procedimento da aia, voltando calmamente a montar o seu cavalo. Andaram assim durante alguns quilómetros, mas o dia estava quente e os raios de sol incidiam sobre elas. A princesa em breve voltou a sentir sede. E, ao passarem por outro regato, como tinha já esquecido as rudes palavras da aia, pediu-lhe:

-Por favor, traz-me o meu copo de ouro cheio de água.

Desta vez a aia respondeu à ama em tom ainda mais arrogante do que anteriormente:

-Se quer beber, desmonte e beba. Não estou para ser sua criada.

E a princesa, compelida pela sede que sentia, voltou a desmontar. Ao curvar-se sobre o curso de água exclamou:

-Oh, céus, que hei-de fazer?!

E as três gotas de sangue responderam:

Soubesse a tua mãe, e então

de dor se lhe quebrava o coração.

Mas, à medida que bebia, curvada sobre a água, o lenço com as três gotas de sangue caiu-lhe do vestido e foi arrastado pela correnteza. Na sua ansiedade, a princesa nem sequer o notou, mas a aia observou-o com prazer. Sabia que, a partir desse momento, podia fazer da noiva o que quisesse, pois, ao perder as três gotas de sangue, a princesa tinha ficado fraca e sem qualquer poder.

Quando a princesa quis voltar a montar o seu cavalo, a aia exclamou: «Sou eu quem vai montar Falada. A senhora irá na minha pileca.» A isto, a princesa teve de se submeter. A seguir, a aia mandou-a despir todos os seus trajes reais e envergar os seus, e finalmente obrigou-a a jurar pelo Céu que não diria nem uma palavra sobre o assunto ao chegarem ao palácio. Se o não fizesse seria imediatamente morta. E Falada observou tudo e tudo fixou.

A aia da princesa montou Falada, e a noiva real o outro cavalo, e assim prosseguiram a jornada até, finalmente, chegarem ao palácio. Houve grande regozijo à sua chegada, e o príncipe precipitou-se para as saudar. Pensando que a aia era a sua noiva, ajudou-a a descer do cavalo, e conduziu-a pelas escadarias até à câmara real.

E, entretanto, a verdadeira princesa era deixada sozinha no pátio.

O velho Rei, que estava a ver tudo da janela, notou a jovem naquela dificuldade, e sentiu-se impressionado ao reparar como ela era gentil, suave, mesmo encantadora. Imediatamente se dirigiu à câmara real e perguntou à falsa noiva quem é que tinha trazido com ela e deixara ficar no pátio.

-Oh - respondeu a disfarçada aia. - Trouxe-a comigo para me fazer companhia na viagem. Dêem algum trabalho a essa rapariga, para ela não ficar inactiva.

Mas o velho Rei não tinha nenhum trabalho para ela, e não conseguia lembrar-se de nada, e por isso disse:

-Eu tenho um rapaz que me guarda os gansos. Ela talvez possa ajudá-lo.

Esse rapaz chama-se Curdken, e a noiva real foi designada para o assistir a guardar os gansos.

Pouco tempo depois a falsa noiva disse ao príncipe:

-Querido noivo, peço-te que me concedas um favor.

E logo ele respondeu:

-Concedê-lo-ei.

Então, faz com que matem o cavalo que me trouxe, pois ele se portou muito mal durante a viagem.

A verdade, porém, é que a aia receava que o cavalo um dia falasse e contasse como ela tinha tratado a princesa. Quando a notícia chegou aos ouvidos desta, a verdadeira princesa dirigiu-se ao carniceiro que iria matar o cavalo e, em segredo, prometeu-lhe uma moeda de ouro se ele lhe fizesse um favor. Havia na cidade um grande portão escuro, através do qual ela tinha de passar com os seus gansos, de manhã e ao entardecer. Poderia ele pendurar ali a cabeça de Falada, para que ela voltasse a vê-lo?

O homem prometeu fazer como lhe era pedido, e no dia seguinte cortou a cabeça do cavalo e pendurou-a firmemente sobre o portão da cidade.

Quando ela e Curdken conduziram o bando de gansos na manhã seguinte, ela segredou, ao passar sob o cavalo:

-Oh, Falada, és tu, tenho a certeza

e a cabeça respondeu:

E és tu quem passa, bela princesa;

soubesse a tua mãe, e então

de dor se lhe quebrava o coração.

A verdadeira princesa deixou a cidade com Curdken e levou os gansos até ao campo. E, ao chegarem ao prado onde os gansos se alimentavam, ela sentou-se e soltou o cabelo, que era de ouro puro. Curdken gostava de o ver cintilar ao sol, e sentiu desejo de lhe arrancar alguns fios.

Foi então que a princesa falou:

Vento, vento, suplico-te eu,

sopra de Curdken o velho chapéu,

faz com que corra por campos e montes

até que o meu cabelo que à brisa dança

solto e caído como água das fontes

seja penteado todo numa trança.

Um golpe de vento arremessou para longe o chapéu de Curdken, e o rapaz teve de correr atrás dele por montes e vales. Quando regressou da sua perseguição, ela tinha acabado de pentear e entrançar o cabelo, e assim ele tinha perdido a oportunidade de lhe arrancar um ou dois fios. Curdken ficou zangado, e deixou de lhe falar. Guardaram os gansos em silêncio até ao entardecer, e só então regressaram à cidade.

Na manhã seguinte, ao voltarem a passar pelo portão, a jovem disse:

-Oh, Falada, és tu, tenho a certeza

e a cabeça replicou:

E és tu quem passa, bela princesa;

soubesse a tua mãe, e então

de dor se lhe quebrava o coração.

Prosseguiram o seu caminho até chegarem ao prado, onde ela se sentou e começou a pentear o cabelo.

Curdken dirigiu-se-lhe e tentou puxar um anel de cabelo, mas ela rapidamente chamou:

Vento, vento, suplico-te eu,

sopra de Curdken o velho chapéu,

faz com que corra por campos e montes

até que o meu cabelo que à brisa dança

solto e caído como a água das fontes

seja penteado todo numa trança.

De novo um golpe de vento veio e arremessou para longe o chapéu de Curdken, obrigando-o a ir em sua perseguição. Quando ele regressou já a princesa tinha acabado de pentear a sua loura trança, e ele não conseguiu os seus objectivos. Ficaram então a guardar os gansos até entardecer.

Mas, nessa noite, após regressarem ao palácio, Curdken dirigiu-se ao velho Rei e disse-lhe:

-Recuso-me a continuar a ir guardar os gansos com essa rapariga.

-Mas por que motivo? - perguntou o Rei.

-Porque ela não fez outra coisa senão aborrecer-me durante todo o dia - replicou Curdken.

E contou então ao Rei o estranho procedimento da princesa:

-Todas as manhãs, quando passamos com os gansos pelo portão da cidade, ela diz para uma cabeça de cavalo que nele está pendurada:

-Oh, Falada, és tu, tenho a certeza

e a cabeça responde:

E és tu quem passa, bela princesa;

soubesse a tua mãe, e então

de dor se lhe quebrava o coração.

E Curdken prosseguiu, contando-lhe o que acontecera no prado para onde levavam os gansos, e como ele tinha sempre de correr em perseguição do chapéu.

O velho Rei mandou-o fazer na manhã seguinte como habitualmente. E, quando o Sol nasceu, ele próprio se colocou atrás do portão e ouviu como a rapariga saudava Falada. Depois, seguiu-a através dos campos e escondeu-se cuidadosamente atrás de uns arbustos no prado.

Em breve observou, com os seus próprios olhos, como a rapariga e o rapaz guardavam os gansos, e como, após algum tempo, a rapariga se sentou e soltou o seu longo e belo cabelo, que brilhava como ouro, e repetia:

Vento, vento, suplico-te eu,

sopra de Curdken o velho chapéu,

faz com que corra por campos e montes

até que o meu cabelo que à brisa dança

solto e caído como a água das fontes

seja penteado todo numa trança.

Nesse momento, um golpe de vento arrebatou o chapéu de Curdken, e lá teve ele de correr por montes e vales em sua perseguição, enquanto a rapariga calmamente penteava e entrançava o cabelo.

Tudo isto o velho Rei observou, tendo depois regressado ao palácio sem que eles notassem a sua presença. De noite, quando a rapariga chegou ao palácio, chamou-a de parte e perguntou-lhe por que motivo se portara daquela maneira.

-Não posso dizer-vos qual o motivo - replicou ela. - Não me atrevo a contar a ninguém as minhas desgraças, pois jurei pelos céus não o fazer, ou perderia a vida.

O velho Rei pediu-lhe, insistentemente, que lhe respondesse, mas nada conseguiu arrancar-lhe. Finalmente, disse-lhe:

-Bem, se não me queres dizer, ao menos conta os teus problemas ali ao fogão de ferro.

E afastou-se deixando-a sozinha.

A rapariga arrastou-se até ao fogão e começou a soluçar, contando todas as tristezas que lhe iam no coração.

-Aqui estou eu, abandonada por toda a gente - eu, que sou filha de um rei, e que uma falsa aia obrigou a trocar com ela as roupas, tomando o meu lugar como noiva real, enquanto eu só sirvo para guardar gansos.

Soubesse a minha mãe, e então

de dor se lhe quebrava o coração.

Mas o velho Rei fora colocar-se, lá fora, junto à chaminé do fogão, e ouviu todas as suas palavras. Penetrou de novo na sala e ordenou que lhe envergassem um traje real, em que ela ficou extraordinariamente encantadora. Em seguida, mandou chamar o filho, e revelou-lhe que tinha uma falsa noiva, que não passava de uma aia, enquanto a verdadeira noiva, que até então estivera no lugar de guardadora de gansos, estava a seu lado.

O jovem príncipe rejubilou de todo o coração ao verificar como ela era bela e ao saber como era bondosa, e logo foi preparado um grande banquete, para o qual toda a corte foi convidada. O noivo sentou-se à cabeceira da mesa, a verdadeira princesa a um dos seus lados, e a aia a outro. Esta estava tão admirada, que nem reconheceu a princesa nos seus trajes esplendorosos. Depois de todos terem comido e se mostrarem alegres e satisfeitos, o Rei pediu à falsa noiva que lhe resolvesse um problema.

-Que se deve fazer - perguntou - a uma certa pessoa que iludiu toda a gente?

E prosseguiu contando toda a história, acabando por dizer:

-Ora, que sentença deverá ser pronunciada?

A falsa noiva respondeu:

-Essa mulher deve ser metida nua num barril cheio de pregos afiados, e o barril arrastado por dois cavalos brancos através das ruas da cidade, até ela morrer.

-És tu a mulher - disse então o Rei. - Acabas de pronunciar a tua própria sentença. E assim será feito contigo.

O jovem príncipe casou com a sua verdadeira noiva, e ambos reinaram em paz e felicidade.

Jakob e Wilhelm Grimm

Os Mais Belos Contos de Fadas, Selecções do Reader's Digest, edição fac-similada da antologia de 1970, Lisboa, 1994

2 comentários:

WOLKENGEDANKEN disse...

Ola amiga, estas em plena Grimmomania ? :)) Em Portugal os contos de Grimm, que claro em realidade muitos devem ser tambem de outros origens que "germanicos" tambem sao do repertorio normal das criancas ?

almariada disse...

Sim, são, mas agora há muitos livros para as crianças e talvez os contos de fadas estejam a ficar um pouco esquecidos...