“Enquanto os leões não tiverem historiadores, as histórias de caça glorificam o caçador.”
Provérbio do Chade
Era uma vez um leão. Os leões não se preocupam com o tempo nem com o lugar, por isso não se sabe quando nem onde aconteceu esta história nem isso é importante. O leão nasceu numa família de três leoas, um leão e quatro leõezinhos. No início mamava e aprendia a ver e compreender e logo começou a brincar e a aprender a caçar. Lá em cima estava o céu e cá em baixo a terra. O leão gostava de tudo, mas do que ele gostava mais era da mãe. A mãe dele era muito carinhosa e também uma excelente caçadora por isso a vida era boa e o leãozinho crescia feliz e contente no seio da sua família.
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Quando a juba lhe começou a crescer também algo nele cresceu que o fez alargar as suas explorações e o território a percorrer era imenso. Descobriu então outras famílias de leões e também mais animais do que aqueles que caçava e comia. Descobriu paisagens diferentes e passeava. O leão passeava.
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Quando estava cansado dormia. Os seus sonhos e as suas aventuras misturavam-se e não se misturavam. O leão vivia o que sentia e sentia o que vivia. Tornou-se um grande leão e conheceu leoas de quem gostou e com quem constituiu família. Teve filhos. Brincou com eles. Lutou com outros leões. Conheceu fome e fartura, doença e saúde. Conheceu as cores, os cheiros, os ventos, a música do mundo. Conheceu o seu próprio rugido e as vozes de inúmeros animais assim como a textura de muitos silêncios diurnos e nocturnos. Conheceu o entusiasmo e o cansaço. O leão corria, o leão bocejava. O leão fechava os olhos e não dormia. O leão pensava. O leão perdia o contacto com a realidade.
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O estar do ser é música. Um eterno agora que se repete e não se repete, como os espectáculos ensaiados. Também lhes podemos chamar estados de espírito. E há tantos que não há nomes que cheguem, são como as cores que vemos e como as cores que já não vemos mas podemos acreditar que existam. Os estados de espírito são como os cheiros do ar de que só nos apercebemos quando se alteram e que, se nos acostumamos a eles, deixamos de sentir.
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As metamorfoses dos estados de espírito, espontâneas e calculadas, são tão espantosas quanto as das plantas e dos animais e acompanham-nas, estão-lhes afectas. De todas as metamorfoses são as das nuvens as mais rápidas e radicais. Acompanhá-las abre o espírito aos sinais. Os modos como a luz do sol lhes toca, as atravessa, se reflecte nelas e os modos como elas o ocultam, o descobrem, correm ao seu encontro, ou dele se afastam, os modos como descem em nevoeiro e sobem encostas de montanhas como se fossem animais grandes, esfarrapados, em transformação, assim os estados de espírito se desmancham ou tomam forma.
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E então já não é o leão que pensa com os olhos fechados, mas toda a família pensa agitando as caudas para afastar as moscas. Nós não voamos como as aves mas também nós, como elas, andamos atrás das metamorfoses da nossa alimentação. Levantamo-nos e vamos e, enquanto vamos, existimos em bando, reconhecemo-nos, chamamo-nos, esperamos uns pelos outros e os nossos estados de espírito comungam o Sol que se põe, o Sol que nasce, a Lua que se torna fina e desaparece e regressa e arredonda. Nós, leoas e leões, conhecemos as aves que pousam ao pé de nós e em cima de nós nos desparasitam, uma por uma, com os olhos fechados.