Vladimir Kush

Vladimir KUSH, Ripples on the Ocean, (Ondulações no Oceano)

Rumi

A vela do navio do ser humano é a fé.
Quando há uma vela, o vento pode levá-lo
A um lugar após outro de poder e maravilha.
Sem vela, todas as palavras são ventos.

Jalāl-ad-Dīn Muhammad RUMI




quinta-feira, 10 de outubro de 2013

um belo jogo dura pouco

Joãozinho e Serenella brincavam às guerras, no leito seco dum regato, de margens cobertas de canas e chão cinzento e amarelo. Não havia inimigos, na verdade, nem sequer batalhas com princípio e fim; seguiam simplesmente pelo leito do rio abaixo, uma cana na mão, simulando cenas de guerra, conforme lhes vinham à cabeça.

As canas representavam toda a espécie de armas: uma baioneta, e Joãozinho atirava-se ao assalto sobre o leito arenoso, soltando um ronco gutural; metralhadora, e assentava-a entre duas pedras, fazendo-a girar à volta, em rajadas que a faziam estremecer; bandeira, e erguia-a ao alto, feito alferes, cravando-a numa lomba e a seguir caía, levando as mãos ao coração.

-Cruz Vermelha! - chamou. - Tu és a Cruz Vermelha. Vem cá, não vês que estou ferido?

Serenella, que até ali fora metralhadora inimiga, correu para ele e aplicou-lhe na testa uma folha de hortelã, à laia de adesivo.

Joãozinho deu um salto, segurou a cana horizontalmente, e escapuliu-se, de braços estendidos.

-Os bombardeiros! Os bombardeiros sobre o objectivo! Viiiiiiiiiiii! Boum! - e deixou cair uma mão cheia de cascalho em cima de Serenella.

-Agora és uma coluna motorizada inimiga em marcha e eu vou bombardear-te!

-Que é que devo fazer? - perguntou Serenella.

-Rasteja pelo chão e vê se escapas às bombas. Viiiiiiiiiiii! Boum! Não, agora vocês espalham-se pelo terreno aberto!

Serenella correu por entre as canas, mas Joãozinho chamou-o de novo, gritando:

-O caça inimigo! Tu és o caça inimigo! Vá, ataca!

Mas como Serenella não sabia bem o que fazem os caças, Joãozinho decidiu fazer ele de caça inimigo e deixar a Serenella o papel de esquadrilha de bombardeiros.

-Agora sou o piloto que se precipita em chamas, olha! - disse Joãozinho.

-E eu? E eu? - perguntou Serenella.

-Tu, tu és a que abraça os que tombam na guerra!

-Quem? Quem?

-A glória! Não sabes como é a glória? Vens como se fosses um anjo e debruças-te sobre mim.

Serenella tentou fazer de glória e saiu-se muito bem.

Depois, imitaram o lançamento de V-2, atirando as canas como dardos. As canas acabaram por ir boiar numa poça cheia de água esverdeada. Travaram então uma batalha naval com as canas-contratorpedeiros fazendo fogo sobre Serenella-couraçado e Serenella-porto invadido pelas canas-comandos e as canhonadas de Serenella contra Joãozinho-porta-aviões e as mãos-submarinos de Joãozinho contra os cruzadores-canas e as mãos-náufragos de Joãozinho na baleeira-Serenella.

Molhados da cabeça aos pés, rebolaram-se na areia e Joãozinho decidiu ser carro de assalto, quer dizer, ele carro blindado e Serenella minas anti-carro. Explodiram e saltaram pelo ar, tornaram  a pegar nas canas e, montando-as como se fossem cavalos, travaram recontros entre patrulhas de cavalaria. Para fazer uma carga era preciso cornetim, e Joãozinho, arrancando uma bainha à sua cana, segurou-a entre os dedos e soprou, fazendo-a vibrar num assobio áspero. Ante aquele som apareceram três soldados de verdade.

O regato alargava-se ali e o vale era um prado cavado em concha, cortado por tufos de arbustos. Dois soldados, com ramos verdes no capacete, encontravam-se deitados de barriga no chão, as solas das botas ferradas verticais sobre o terreno. Um deles, com auscultadores nas orelhas, fazia funcionar um rádio de campanha, de antena recurva.

Em silêncio, arrastando as canas pelas pontas, as duas crianças, abeiraram-se de um dos soldados. Estendido na relva, a espingarda apontada, tinha às costas capacete, mochila, bornal, granadas de mão, cantil e máscara antigás, como se tudo aquilo lhe tivesse caído em cima, numa avalancha de objectos. Sobre tudo isto, ramos arrancados a uma mimosa, com lanhos que punham à mostra o cerne vermelho da madeira bem como a casca dilacerada. O soldado, do chão, voltou a cara para os garotos, quase sem mexer o capacete, virando-se de tal maneira que uma das faces ficou encostada à terra. Tinha olhos cinzentos e tristes e uma folha de cerejeira nos lábios.

Os garotos acocoraram-se a seu lado. Apontaram as canas para a frente, paralelas à espingarda do soldado. Joãozinho perguntou-lhe:

-Andas na guerra?

O soldado arrastou o queixo no chão, abriu os lábios e cuspiu a folha de cerejeira, sem dizer nada. Agarrou na cana de Joãozinho com uma das mãos na intenção de a partir, mas a cana era tão nova e esguia, que se dobrava toda sem quebrar; o soldado teve de a torcer e desfazê-la fibra a fibra. A Joãozinho desagradava-lhe ver-se assim roubado daquela arma que lhe merecia toda a afeição, mas o soldado punha nos seus gestos tanto afinco que não ousou dizer-lhe nada.

-Olha, lá em baixo - apontou Serenella.

Avistara, na vertente oposta do vale, um outro soldado, a agitar bandeirolas coloridas.

-Desculpe: podemos ir até lá abaixo? - perguntou Joãozinho.

O soldado devia ter feito um movimento como que um encolher de ombros, porque os objectos que trazia às costas chocalharam uns nos outros e o cantil bateu no capacete.

Os garotos afastaram-se, na ponta dos pés.

Sobre o valado, uma amoreira dava sombra e junto do tronco, sentado numa cadeira desmontável, estava sentado um general. Era um sujeito gordo em mangas de camisa, que olhava por um binóculo, levantando os óculos escuros para a testa e baixando-os em seguida para enxugar o suor com um lenço. Limpava depois com o lenço os óculos também húmidos de suor. Ao passar as mãos sobre uma carta topográfica que tinha aberta sobre os joelhos, ia falando, resfolgante, com o seu estado-maior: oficiais sentados na erva, a seus pés, de pernas encolhidas, as mãos pousadas nos bornais ou segurando binóculos.

Joãozinho e Serenella conservaram-se por momentos ali ao lado do general, segurando as canas direitas, como se apresentassem armas.

-Uf!... o tiroteio inimigo - dizia o general - cai mesmo em cheio sobre os nossos... uf!... - depois, outras palavras que não se percebiam! Os seus dedos curtos, semeados duma penugem avermelhada, iam percorrendo o mapa, como enormes lagartos. - Que dolorosa perda de homens, mas... uf!... as posições...

Os oficiais do estado-maior, sentados naquelas incómodas posições, apoiando-se nas mãos e outras vezes nos cotovelos e só com muita dificuldade resistindo à tentação de se estenderem ao comprido na erva e adormecerem ao sol, reagiam, mostrando-se muito activos à volta do general: escreviam notas nos canhenhos, seguiam as operações na carta topográfica e demonstravam interesse por um deles, que se contorcia às voltas com um goniómetro; pareciam estudar um a um os elementos da paisagem e as tropas escondidas, que disparavam continuamente, com impassível resignação, como se os sinais do lápis do general sobre o mapa as apagassem da própria face da terra.

-Naturalmente, além, nas vinhas - dizia o general - os nossos tiros fazem terra queimada... além, a descoberto... uf!... estão a ver o observatório inimigo?

-Está assinalado no mapa, meu general - disse um oficial, muito zeloso -, como «habitação rústica»...

O general, porém, não olhou para o mapa e continuava a indicar no morro a casa que Joãozinho e Serenella sabiam ser a do velho Paulo, criador de bichos-da-seda.

-É o primeiro objectivo a abater - disse o general.

O oficial do goniómetro forneceu os números.

As crianças olhavam para a casa do criador dos bichos-da-seda, depois para o lápis do general, que desenhava uma cruz no mapa.

Soou um tiro. Joãozinho e Serenella sobressaltaram-se e as canas bateram uma na outra.

-Que é que estes miúdos andam aqui a fazer? - disse uma voz, e eles viram-se agarrados pelos colarinhos. - Quem é que deixou estes miúdos andarem pela zona de operações?

Num salto de gato Joãozinho e Serenella conseguiram desenvencilhar-se daquelas mãos.

Desataram a correr por um carreiro adiante, num trote certo, calados e sem se voltarem para trás, apertando nas mãos as suas canas em posição de ao alto arma.

Quando lhes faltou o fôlego, pararam. Viram-se num sítio onde o canavial formava uma barreira longa e densa, fazendo restolhar no ar as bainhas verde-vivo pelo lado de dentro e verde-pálido por fora.

-Aqui - disse Joãozinho - há muito material para fazermos espingardas.

Mas a alegria surgia agora um tanto velada. Deitaram fora as velhas armas e meteram-se pelo canavial adentro.

-Olha que rica arma que eu arranjei!

-A minha é mais alta!

A verdade é que nenhuma se parecia com as do princípio. Nenhuma valia o que valiam as outras e imaginá-las lanças, metralhadoras ou aeroplanos já não dava nenhuma satisfação. O canavial acabava de repente; depois das canas era o céu e o mar. A ribanceira descia em socalcos, preenchidos por estreitas faixas de terra cultivada, que esteiras ao alto protegiam do sol. Depois, começavam os seixos marinhos e o mar estendia-se, onda após onda, até ao fim do horizonte.

-Aaaahuu! - gritou Joãozinho, desatando a correr em direcção à vereda. - Ao assalto...! Estamos debaixo de fogo inimigo...!

-Aaaaaahuuu! - imitou Serenella.

Desatou também a correr mas parou de repente: Joãozinho fizera o mesmo e quedara-se, entristecido. Acontecera-lhe, ao gritar, ouvir a sua voz como se fosse alheia.

-Terra queimada! - gritou, de novo. - Passam-lhe por cima os carros de assalto e depois já nem a erva cresce.

Rebolara-se pelo chão arenoso, mas Joãozinho pensou que era muito estúpido estarem para ali a amachucar os ossos numa brincadeira tão parva.

Embirrou com a outra:

-Serenella, se não sabes brincar também não tem piada nenhuma!

-Mas porquê? Que é que queres que eu faça?

-Fazaes de metralhadora! És um ninho de metralhadoras e eu tenho de tomar-te de assalto.

-Rat-ta-ta-ta-ta-ta! - fez Serenella, condescendente, atirando-se de rojo.

-Eu agora avanço para te atirar uma granada de mão, mas fico caído no chão. Olha como é!

Atirou-lhe uma folha de palmeira, depois levou as mãos ao peito e caiu por terra. Caiu bem. Mas já nem morrer em combate o satisfazia.

Serenella ainda insistiu umas tantas vezes:

-Rat-ta-ta-ta-ta-ta!

Depois percebeu que devia mudar. Aproximou-se do companheiro e disse:

-Cá estou. Agora sou a glória. A glória que abraça os que tombam no campo de batalha.

Debruçou-se sobre ele como um anjo, mas Joãozinho não se mexia e Serenella achou tudo aquilo muito estúpido.

Sentaram-se no chão, de cabeça baixa, arrancando, lentamente, tufos de erva. A princípio, brincar às guerras fora divertido, mas agora vinha-lhes à ideia o olhar triste daquele soldado com a folha nos lábios e os dedos peludos do general que apagavam vinhas e casais. Joãozinho procurava lembrar-se de qualquer outra brincadeira, mas, a meio de qualquer pensamento, surgiam-lhe sempre pela frente aqueles olhos tristes e aqueles dedos avermelhados.

Teve uma ideia:

-Um jogo novo! - e deu um salto.

Via-se um muro recamado por uma trepadeira de madressilvas. Joãozinho agarrou numa ponta e começou a puxá-la, procurando não a pisar e não a soltar do muro.

-Sabes o que isto é?

-Que é?

-É uma mina carregada, escondida debaixo do Estado-Maior do Exército.

-E depois, o que é que vamos fazer?

-Tapa os ouvidos! Pegamos fogo à mecha e em poucos segundos o exército vai pelos ares!

Serenella tapou os ouvidos. Joãozinho simulou o gesto de acender um fósforo e de o aproximar da mecha, depois fez pfft! e seguiu com o olhar a mecha imaginária, mordida pelas chamas.

-Atira-te para o chão, Serenella, depressa! - gritou ele tapando os ouvidos.

-Ouviste? Mas que grande estrondo! Acabou-se o exército!

Serenella riu-se:

-Isto agora já é uma brincadeira divertida!

Joãozinho puxou para si mais umas hastes.

-Sabes para quem é esta mecha? Agora é para o Estado-Maior da Armada!

Serenella já tinha os dedos nos ouvidos. Joãozinho fingiu que botava fogo.

-Atira-te para o chão depressa, Serenella! - gritou ele, dando-lhe um empurrão.

O Estado-Maior da Armada também tinha ido pelo ar.

Esta agora é para o Estado-Maior da Aviação!

Aquilo era uma brincadeira deveras emocionante.

-E agora que é que vais fazer saltar pelo ar? - perguntou Serenella, mal se levantou.

Joãozinho não sabia o que é que havia de seguir-se à aviação.

-Parece-me que já não há mais nada - rematou. - Foram todos pelo ar.

E desceram, em direcção ao mar, a construir castelos de areia.

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Italo Calvino, "Os Idílios Difíceis", p. 69-77, Editora Arcádia Lda., Lisboa, 1964 (primeira publicação em italiano em 1958)

imagem aqui, infelizmente o livro que estou a ler já não tem esta linda sobrecapa...

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