Vladimir Kush

Vladimir KUSH, Ripples on the Ocean, (Ondulações no Oceano)

Rumi

A vela do navio do ser humano é a fé.
Quando há uma vela, o vento pode levá-lo
A um lugar após outro de poder e maravilha.
Sem vela, todas as palavras são ventos.

Jalāl-ad-Dīn Muhammad RUMI




quarta-feira, 16 de junho de 2010

caleidoscópio

Eu estava em posição de desvantagem e ele aproveitou para me desenraizar, puxando-me para si com a força do seu braço. Podia ter-me desvanecido então mas a proximidade era tão avassaladora e a sua alegria de vencer tão irradiante que era impossível sucumbir como queria. Em vez disso enchi-me de calor e fechei os olhos porque não podia suportar tanta beleza. Foi assim que ele me venceu e conquistou e talvez não o devesse ter feito porque fez de mim um farol sem o qual já não sabia navegar. Nunca me censurou mas eu sentia o que ele sentia e sabia que tinha saudades de se perder no vasto oceano da ignorância e do desapego depois de nos elevarmos juntos ao sétimo céu e voltarmos a cair no frio e na fome. Quis então transformar-me na vela do seu barco e deixar que o vento nos levasse. Ele julgou que era seu dever proteger-me do perigo e disse que preferia navegar sempre à vista da costa que permitir que o vento e as tempestades me envelhecessem e desgastassem, mas eu fiz-lhe ver que não era nem tão nova nem tão bela que tivesse que ser preservada, pelo contrário. Apesar de tantos anos de cautelas já não conservava a juventude e devia agora por-me ao serviço de algo que me transcendesse e não arruinar-me lentamente à beira-mar. O amor dele não era maior que o vigor e o seu desejo acabou por vencer e partimos.

Estava uma bela manhã de nevoeiro rosa e dourado, que se abria aqui e ali deixando ver o azul. O vento era fraco mas a minha vontade era grande e abri-me de modo que toda eu fui tomada pelo vento. Saímos lentamente, ele manobrou com cautela enquanto saiamos do porto e contornávamos o cabo, mas quando o vasto oceano se abriu à nossa frente... ah... tomados da vertigem da vastidão perdemo-nos no azul.

De volta ao moinho ele estava branco de farinha e sabia-me a bolo. Eu já não era as velas e também não era a mó. Era, lá em cima, a câmara escura onde ele se revelava um perfeito desconhecido que pela primeira vez ali se abrigava. Noites estreladas após noites estreladas, noites habitadas e desabitadas de Lua, todas nos eram propícias. Eu despojava-o da farinha, ele despojava-me da vergonha. Gruta e rainha eu aceitava-o como animal e senhor. Trovão e homem ele deslumbrava-me, aquecia-me, transportava-me no éter eterno de um amor que não nos pertencia mas nos mantinha e consentia sem cessar. Quando as nuvens nos permitiam brincávamos às escondidas, com o silêncio riamos músicas de trovadores. Inventávamos tudo e distribuíamos às mãos cheias as graças que inspiravam os poetas.

De tanto habitar o etéreo perdíamos a consistência e eu tinha saudades de ser esmagada pelo seu peso. Não caímos, viemos descendo, pairando como as folhas de outono vermelhas e castanhas. Olhos nos olhos dissolvemo-nos em consistências cada vez mais pesadas, até que nos tornámos um com a terra. As nossas raízes misturadas absorviam e as seivas corriam nos nossos membros entrelaçados até à superfície do mundo. Oh... vieram Invernos, vieram os Verões. Calores e chuvas, tudo nos foi alimento. Confundidos e satisfeitos já não nos distinguíamos, éramos ao mesmo tempo vermes e borboletas, os insectos e as aves que os comiam. Desaparecíamos e regressávamos com a regularidade do Sol. Éramos e não éramos adultos, crianças e muito antigos.

Quando de todo já não se via nem a terra nem vestígios dela e não havia nada à vista senão água e céu descansámos por fim naquele embalo feliz que só raramente nos é dado e nunca dura muito. O barco era um sorriso duradouro. Os golfinhos vieram saltar e cantar à nossa volta. Era possível supor que algum peixe haveria de morder o anzol para que nós depois pudéssemos também mordê-lo, mas nesta pausa de Sol e alegria dançámos para os golfinhos com tanta energia que caímos do barco no meio deles e aprendemos a suster a respiração para os acompanhar quando passavam por baixo do casco. Sem limites para a ousadia descemos com eles na escuridão das águas e conhecemos mundos mais ou menos pequenos e exóticos e seus ingénuos e vorazes habitantes. Até mesmo os mundos inóspitos nos agradavam. Não temíamos nada, tínhamos já desaparecido tantas vezes que esse jogo já não nos espantava. Íamos e vínhamos ao sabor das ondas calmas ou desesperadas de oceanos mais ou menos molhados.

Ainda havia a casa onde um dia ele me encontrara, lá estava naquela aba da montanha, protegida dos ventos do norte e aberta ao calor do sul. Arruinara-se e fora reconstruída algumas vezes. Era habitada por pessoas que lhe ignoravam a história mas sabiam que era velha e conservava amores, nascimentos, saúde, tempos amargos, mortes, enfim: tudo. Regressávamos por vezes como morcegos ou corujas durante a noite, ou andorinhas na primavera. Também como sapos e cobras entre as ervas e podia acontecer que os cães e os gatos, ou até mesmo as pessoas, nos matassem. Que importava isso, se ao mesmo tempo navegávamos, mergulhávamos, crescíamos como raízes, vogávamos como nuvens, nos dissolvíamos cinzentos em névoas abstractas? Pelo meio, pelo centro radiante de um vínculo de prazer, retomávamos histórias interrompidas, terminávamos histórias começadas, começávamos outras ainda por inventar. Cantávamos ou chorávamos, quem poderia dizer o que fazíamos se de nós mesmos esquecidos éramos aves pernaltas e também patas de elefantes e colunas de templos?

E foi assim que tudo começou...

3 comentários:

Nivaldete disse...

Quase uma lenda sobre a origem de um amor...
Uma torrente de imagens, efeitos esperados/inesperados, desvios, fusão, con-fusão, difusão, abismos, võos, fôlegos, desfôlegos...
Quanta paixão!!!

Fica-se com vontade de viver... isso.

Um grande abraço!

Nivaldete disse...

...e metamorfoses, ser/estar em tudo e em si, turbilhão, desfazimento, UNIão, dois-um... Ufa!...

fico
sem mais
palavra,
palavra.

almariada disse...

bem, Nivaldete, acho que és a melhor leitora que se pode desejar! :)
Muito, muito obrigada pela atenção! Abraços!