- "Sinto-me como a última geração do que se convencionou ser o império português. Há no meu sangue uma mistura de continentes, nos meus afectos uma mistura de gentes, na minha formação a cultura portuguesa, na minha poesia o resumo do pulsar da minha ilha.
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Nasci na Roça Olímpia na ilha do Príncipe, S. Tomé e Príncipe, a 11 de Setembro de 1925. O meu pai, David Guedes de Carvalho, era de uma família judia do Porto, de nome Pinto de Carvalho. A minha mãe era mestiça, filha de angolana e indiano. O meu avô materno era descendente de uma família Moniz, de Goa, e trago bem marcada a fusão das minhas origens.
Comecei a viajar para Portugal muito nova. A primeira vez que aqui estive tinha apenas três anos e fui baptizada em Lisboa.
A minha mãe morreu cedo e dos meus irmãos, só a Maria Helena está viva. Um dos irmãos foi juiz na Madeira, Moçambique e Angola. Ficaram sobrinhos, um deles meu afilhado, também é advogado. No Princípe e em S. Tomé, tenho uma cunhada, sobrinhos e a minha prima Julieta do Espírito Santo, entre outros parentes menos próximos.
Apesar de ter passado grande parte da infância em S. Tomé e Princípe, não falo, fluentemente, o crioulo. Filha de professora e de juiz, havia na minha casa a pretensão de que os filhos fossem um exemplo no modo de se expressar. O professor Lindley Cintra costumava gabar a correcção do modo como me expressava na nossa língua.
Fiz a minha escolaridade num Colégio de franciscanas em Valença do Minho e, depois, no Sagrado Coração de Maria, em Lisboa. Por esse tempo, a madre-geral do Sagrado Coração era americana e tinha o hábito de organizar uma cerimónia no final do ano lectivo onde apresentava as classificações finais das alunas. Eu tive boas notas e vinte valores em comportamento, em delicadeza, em pontualidade. A madre, muito simpaticamente, exclamou: vinte e um valores! Eram os frutos da mentalização inculcada pelo meu pai que nos dizia que, como judias e mestiças, deveríamos estar melhor preparadas do que as outras raparigas para vencer na vida. Foram palavras que me marcaram para sempre.
Voltei para África nas vésperas da guerra. Todos nós, africanos, voltámos para casa.
Regressei de S. Tomé muito doente e fui para Valença do Minho repousar. Curei-me graças aos cuidados do Dr. Tapian, um médico muito considerado na época.
Casei em Lisboa e por aqui fiquei muitos anos.
Estive sempre atenta aos anseios dos africanos que aqui estudavam. Encontrávamo-nos na Casa dos Estudantes do Império, em Lisboa, onde participava em actividades culturais, com residentes de todas as colónias. A Associação C.E.I. foi fundada em 1943 e era a fusão de diversas Casas de Estudantes oriundos de todo o espaço do ultramar português. (...) Era uma iniciativa apadrinhada pelo regime.
(...) Lembro-me de que, no chão de uma sala, havia um grande mapa com todas as colónias da autoria do Arquitecto Trofa Real, de Angola, que também frequentava a Casa.
(...) A Casa dos Estudantes do Império estava organizada por secções autónomas: de Cabo Verde, S. Tomé e Príncipe, e assim sucessivamente. Assegurava alojamento e tinha cantina própria. Era, também, lugar de convívio e de cultura: organizavam-se exposições, colóquios, recitais, bailes e actividades desportivas. As produções literárias dos associados eram publicadas na revista Mensagem, fundada por Carlos Ervedosa, Alfredo Margarido e Costa Andrade e constitui, hoje, uma obra de referência das primeiras produções de poetas e escritores da lusofonia.
Eu colaborava nos eventos culturais e aparecia por lá para conversar. Falávamos de livros, da situação política nacional e internacional e, naturalmente, das nossas terras.
Estiveram lá Amilcar Cabral, Agostinho Neto, Chissano, Fernando Mourão, Narana Cossoró, Rui Romano, Francisco Tenreiro, meu amigo pessoal, entre outros de que não me lembro agora.
O Francisco Tenreiro foi muito importante para as gerações seguintes do arquipélago pela consciência étnica que imprimia nas suas poesias. Através dele seguimos de perto o pensamento e a obra de Senghor e de Aimé Césaire que, de certa forma, se tornaram nossos mentores do mesmo modo que foram referências históricas para a África negra. (...) Os meus poemas tornaram-se mais africanos.
Em Alto como o Silêncio (Lisboa, 1957), a minha poesia é a saudade dos sons, cheiros, luz e, também das angústias, dos medos e sonhos da minha ilha. As minhas composições falam dos homens, dos pássaros, dos cacaueiros, dos coqueiros e do mar que nos libertava e nos oprimia.
(...) Na década de sessenta começaram as perseguições e os exílios.
Em 1965, a PIDE/DGS selou as portas da Casa dos Estudantes do Império e o ficheiro foi apreendido para facilitar as identificações. Esse ficheiro está, agora, no Arquivo Nacional da Torre do Tombo. Em 1993, a Câmara Municipal de Lisboa celebrou os cinquenta anos da fundação da Casa e publicou uma brochura alusiva ao acontecimento.
Em 1962 fui presa, em Caxias, pela P.I.D.E. Eu tinha conhecido Salazar nas festas centenárias da cidade de Guimarães, era então aluna num colégio de Valença e, como tinha boa voz, fui escolhida para, com o Amândio César, darmos as boas vindas a Salazar. E ele beijou-me! Eu repetia para a P.I.D.E. que o Salazar me tinha beijado, que era amiga do Cardeal Patriarca, mas de nada me valeu. Afinal, nós queríamos tão somente a autonomia das colónias, inspirados no modelo francês. Ninguém nos ouviu.
A minha poesia tornava-se num grito de liberdade. Em Vós que ocupais a nossa terra (1963), denuncio "a cobra preta que passeia fardada", a polícia e os soldados do continente, tema que foi recorrente na minha poesia de contestação. É um poema muito dorido e que reflecte o sentir da geração esclarecida das ilhas nessa época.
O espartilho da censura e da opressão política empurrou-me para o exílio. Fui para Paris onde fiquei trinta anos. Fiz lá a minha formação académica. Diplomei-me em Ciências Religiosas na École Pratique des Hautes Études, onde fui aluna de Roland Barthes. Licenciei-me em Letras (Fui aluna de Francastel) e estudei Cinema. Fui secretária-bibliotecária do Instituto de Estudos Portugueses e Brasileiros da Sorbonne, e secretária da Liga Portuguesa do Ensino e da Cultura Popular em Paris. Também fiz teatro, quando era dirigido pelo Benjamim Marques. Com o Carlos César fiz a Barca de Gil Vicente. Ia colaborando em jornais e na revista Estudos Ultramarinos.
(...) Continuei a escrever sobre temas africanos e publiquei Os Poetas e Contistas Africanos (S. Paulo, 1963); Poetas de S. Tomé e Príncipe, (Lisboa, 1963); Nova Soma de poesia do mundo negro "Présence Africaine nº 57" (Paris, 1966).
Depois da Revolução de Abril, iniciou-se uma nova fase na minha vida, talvez mais aliciante ou, espero, mais útil à minha pátria recém-nascida. Era a oportunidade de dar a conhecer aquelas ilhas que amo, pequenos pontos no Atlântico Sul para os grandes países da Europa, procurar dar a conhecer a cultura própria das suas gentes. Tenho orgulho em ter sido embaixadora de S. Tomé e Príncipe em dez países (dos quais Inglaterra, Alemanha, França, Holanda, Bélgica, Suécia e Noruega) e oito organizações (entre elas a UNESCO e a FAO).
Quando Mário Soares foi Presidente da República Portuguesa, ocupei o lugar de consultora para os assuntos africanos.
Enquanto fui embaixadora, foi com muita emoção que ocupei o lugar em Paris, a cidade onde cresci culturalmente. Para além dos assuntos relacionados com as minhas funções oficiais foram importantes as relações de amizade.
(...) Acabada a minha tarefa, pensei voltar à ilha do Príncipe onde ainda sou proprietária da Roça Olímpia, uma grande extensão de coqueiros, cacaueiros e cafézeiros que se espraia pela costa. Mas não tenho meios económicos nem saude para a explorar. (...)
Sempre tive consciência de que os valores portugueses nos tinham formado as raízes do pensamento, até no modo como reagimos à colonização. (...)
Fez-se a descolonização e o meu país sentiu-se livre. Mas independência não foi nem é tudo. Há muito para fazer em toda a África, é necessário e urgente cuidar da língua portuguesa, para que se mantenha. Estou confiante de que outros virão para concretizar os sonhos da minha geração, talvez de outro modo porque os tempos exigem sempre desafios diferentes. A nossa utopia será substituída por outras utopias que darão sentido às lutas por um mundo melhor.
Gosto de pensar que tantos anos de perseverança num ideal, que se concretizou ao longo da minha vida, é reconhecido aqui e lá no meu pequeno país"
Faces de Eva, Revista de Estudos sobre a Mulher, Número 9, Ano 2003, Lisboa, Edições Colibri
A fotografia veio daqui.
Achei tocantes os comentários à notícia da morte da poetisa e diplomata são-tomense no jornal Público de 11 de Março de 2007.