Vladimir Kush

Vladimir KUSH, Ripples on the Ocean, (Ondulações no Oceano)

Rumi

A vela do navio do ser humano é a fé.
Quando há uma vela, o vento pode levá-lo
A um lugar após outro de poder e maravilha.
Sem vela, todas as palavras são ventos.

Jalāl-ad-Dīn Muhammad RUMI




quarta-feira, 24 de março de 2021

Dos delfins e dos amores deles com as delfinas

Agora, saibamos dos delfins e dos amores deles com as delfinas.

Nascem nas ondas estes simpáticos brutos. Gostam infinitamente de música e são muitíssimo amoráveis com os homens. Do teor como eles amam, ninguém o dizia melhor que o padre Bernardino, e seria inveja da minha parte furtar ao leitor o regalo desta descrição: «Os amores destes insignes marítimos viventes, decantados em muitos clarins de fama, têm claros exemplos na história. Arde seu afecto nas águas, conservando-se o seu coração abrasado no líquido elemento, e na mesma jurisdição do maior inimigo do fogo; mas como afectos ardentes dificultosamente entram nos corações, obstando a contradição nos olhos, na idade florente da puerícia, são os indivíduos humanos de mais agradável aspecto, ordinários objectos das suas inclinações.»

Isto é bonito; mas custa a perceber. Era o caso do padre, puxado algum tanto ao lirísmo teutónico, dizer com Petrarca:

Intendemi chi púo che m'intend'io.

Refere-nos a história dum delfim chamado Simão, o qual amava um lindo menino, e andava com ele às cavaleiras de praia em praia, até que, morrendo o menino, o delfim «faleceu de amores depois de uma vida toda de afectos!» Que delfim Simão! Faz chorar a gente com o seu falecimento de amores!

Outro delfim, que por nome não perca, praticava familiarmente com os soldados do procônsul de África Flaviano. Este romano deu-lhe na veneta untar de certos unguentos o delfim, os quais tiraram os sentidos ao amável bicho. «Despertado do letargo, diz o lente de Coimbra em 1743, envergonhou-se de sorte que se ausentou por muito tempo para o profundo do mar.»

Que pudor tinha o peixe! Envergonhou-se de desmaiar! Parece que a vergonha já naquele tempo se tinha feito aquática!

Passados tempos, voltou o delfim desenvergonhado, e «continuou as suas antigas afectuosas expressões.»

Outro delfim, apaixonado e não correspondido de um menino de singular beleza, deu consigo moribundo numa praia, à vista do ingrato amado e expirou, dando «eterna fama às mesmas praias, com mais extremosa fineza do que a celebrada ama de Eneias às de Caeta».

Se estes peixes morrem assim de amores da gente qual não será a ternura do seu afecto às suas delfinas? Como nem todos são Simões, algum haverá que possa chamar-se Romeu, outro Paulo, outro Werther, analogias deduzidas das suas meiguices e choradeiras. Aquilo é que há-de ser amarem-se idealmente, lá onde o pudor é do feitio que vimos! O tempo não vai senão para eles. Os peixes a quererem-se como os humanos já não se querem; e nós, humanos e cristãos, a amarmo-nos, pouco mais ou menos como carapaus e tainhas! O reviramento é completo!

Camilo Castelo Branco,


Cousas leves e pesadas
, p. 112-114, Parceria A. M. Pereira, 1971

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