Entre o nevoeiro diurno
E o nevoeiro noturno
No nevoeiro crepuscular
É que gosta de morar
Por essa fresta sem nome
Às vezes da cor do leite
Outras da cor da fome
«Quem calcorrear as nossas estradas e percorrer veredas e caminhos deparará com uma árvore esguia, que se propaga sem grandes cuidados por meio da sua semente alada que vagueia ao sabor dos ventos até repousar, por fim, em qualquer pequena fenda onde se reproduz - é o pinheiro bravo.
Semente de Pinheiro Bravo Luis Fernandés Garcia 2000 |
Parece certo que o aparecimento em Portugal desta espécie florestal se deve ao facto de os mareantes portugueses, vindos de França, terem metido nas suas embarcações, como combustível, as pinhas, as braças e o lenho de alguns pinheiros bravos originários daquele País. As pinhas ter-se-iam aberto com o calor e a tripulação, habituada a comer os pinhões do nosso pinheiro manso e estranhando a semente muito mais pequena e com uma amêndoa que não podia servir de alimento, contou o sucedido à Rainha Santa que, nessa altura, vivia em Leiria, em terras que lhe haviam sido doadas em 1300, por seu marido, o Rei D. Dinis. À Rainha, que todos escutava, foram mostradas as sementes com a descrição dos pinheiros e com a afirmação de que eles vegetavam bem em terreno arenoso.
Deliberou lançar a semente à terra, e teria sido a Rainha que transportou a «arregaçada de penisco» até uma clareira existente nos seus domínios e, aí, a lançou no areal.
Passaram-se meses, a semente vingou, e quando D. Dinis voltou a aparecer em Monte Real, a Rainha foi mostrar-lhe não só os trabalhos levados a cabo no reguengo de Ulmar, que fazia parte daquela doação, como a sementeira que tinha feito por suas mãos,.
D. Dinis, entusiasmado com o desenvolvimento nascedio, e desejoso de ter em abundância material lenhoso para a construção naval, diz aos mareantes que para a outra viagem lhe tragam mais semente daquela.
Vindo então mais semente - o «penisco» - é lançado noutras clareiras, e o povo, sempre cheio de curiosidade e amor à terra, passou a ir ver o «Pinhal do Rei» e o desenvolvimento que ia tomando.
Depois a semente alada, transportada pelo vento e pelo Homem, foi-se espalhando por toda a costa portuguesa ao norte do Tejo, penetrou nas Beiras e deu-se tão bem nas nossas terras que o pinheiro bravo bem parece ser originário de Portugal.»
Manuel Martins da Cruz, A Resina, Selecção Educativa - Série N - Número 18, Ministério da Educação Nacional, Direcção-Geral do Ensino Primário, 1966
O marido vinha feliz com o almoço que tinha ido buscar ao restaurante, a mulher estava feliz porque ele trazia sumo e não aguardente, a filha estava feliz porque a deixaram comer muito pouco, o filho estava feliz porque não era carne de porco. Quando acabaram de comer distribuíram-se pelos quartos e não se viram mais até à hora do lanche, quando os iogurtes do frigorífico saltaram uns atrás dos outros atrás de uma avalanche de bananas.
Os seres alados noctívagos - corujas, morcegos, meteoritos - são observados do solo por seres noctívagos não alados contra o fundo estrelado da escuridão enquanto nas padarias coze pão.
Quando se adormece e sonha em andamento podemos saber que em muito pouco tempo, quase instantaneamente, tivemos um sonho que pareceu durar muito tempo.
Corre a mão pelo corrimão
enquanto sobe a escada
transporta na mala de mão
uma almofada pesada.
Despedindo-se do amigo, o Dr. Burton deixou o austero compartimento quadrangular. Deixou estas páginas para não voltar sobre elas. Interessa-nos apenas o que ele deixou atrás de si, aquilo em que Poirot viu uma ideia.
Agatha Christie, «Os trabalhos de Hércules», p.8, Edição Livros do Brasil, Colecção Vampiro Gigante
Estamos todos no mesmo barco, a «winged rock» de Mr. Herbert Trench.
G. K. Charleston, Disparates do Mundo, Sabedoria e Meteorologia, p.70, Moraes Editores
Voltando à Feira da Ladra. Este estendal de farrapos, antes do terramoto de 1755, fazia-se no Rossio, ali por onde hoje está a entrada do Passeio; em 1756 era no alto de S. Domingos e Portas de Santo Antão; depois foi para o campo de Santana; mas, invocado pelas saudades dos Lisboetas, voltou para junto do Rossio onde tinha estado; depois, tornou para o campo de Santana, há-de haver quarenta anos,; e agora vai sofrer um novo baldão que bem pode ser o percursor dos seus últimos lampejos nas transmigrações evolucionistas da civilização portuguesa.
Camilo Castelo Branco (1880), Ecos Humorísticos do Minho, Editorial Labirinto, p.23
Na cadência havia às vezes decadência mas quando a cadência se elevava elevava-se a alegria e o baile floria.
As cabras saltam no campo e espalham-se tanto que a paisagem se encabrita e se torna encosta.
Mohandas Karamchand Gandhi, nascido em Porbandar em 1869, veio a ser conhecido no final da vida por Mahatma, o da Grande Alma. O pai foi um alto funcionário administrativo no governo anglo-indiano. A educação familiar ensinou-lhe o ahimsa, o princípio do respeito por todos os seres vivos. Casou com 13 anos e teve quatro filhos. Gandhi foi enviado para Londres para estudar direito, que praticou durante pouco tempo no tribunal de Bombaim.
Em 1893 obrigações profissionais levaram-no à África do Sul, onde permaneceu durante vinte e um anos. Um homem branco pediu-lhe que abandonasse um compartimento de 1ª classe de um comboio em que viajava no Natal, o que ele fez. Este incidente marcou um ponto de viragem na sua vida, sendo na prática responsável pelo início das suas actividades políticas.
Abraham Pais, Einstein viveu aqui, p. 135, Gradiva, 1996
As jovens nuvens iam de bicicleta
numa estrada do campo,
sem árvores nas bermas.
Em sentido contrário vinha o velho sol
numa carroça
puxada por um burro pachorrento.
Quando viu as jovens nuvens gritou:
«Onde vão com tanta pressa?»
«Para lá do sol posto.»
responderam elas.
O grande e gordo sol riu com gosto.
«Então deem meia volta e venham comigo.»
Elas rodearam-no em arco íris.
A manhã ensombrou-se.
A jovem nuvem mais escura
afastou-se
por um atalho.
Choveu e trovejou.
Ficou aliviada.
As hermenêuticas disponíveis não são suficientes e uma nova nova hermenêutica só acrescentaria a insuficiência.
«Baralha, com o sentido de baralho de cartas, foi feminino em época mais recuada da história linguística do Português: D. Francisco Manuel de Melo (Apólogos Dialogais, p. 209) e o Pe. António Vieira (Ali, 1964) utilizam ainda a forma feminina: «As cartas não hão de ser de outra baralha, senão as mesmas» (Sermões, 8, 261). J. P. Machado (Machado, 1987) já documenta o masculino no século XVIII: «inimiga mão lhe foi batendo/C’ um baralho de cartas pela cara» (Nicolau Tolentino, O Bilhar, em Obras Poéticas, I, p. 128).»
A categoria gramatical de género do português antigo ao português actual, Maria Carmen de Frias e Gouveia
https://core.ac.uk/download/pdf/19129463.pdf
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Agora, saibamos dos delfins e dos amores deles com as delfinas.
Nascem nas ondas estes simpáticos brutos. Gostam infinitamente de música e são muitíssimo amoráveis com os homens. Do teor como eles amam, ninguém o dizia melhor que o padre Bernardino, e seria inveja da minha parte furtar ao leitor o regalo desta descrição: «Os amores destes insignes marítimos viventes, decantados em muitos clarins de fama, têm claros exemplos na história. Arde seu afecto nas águas, conservando-se o seu coração abrasado no líquido elemento, e na mesma jurisdição do maior inimigo do fogo; mas como afectos ardentes dificultosamente entram nos corações, obstando a contradição nos olhos, na idade florente da puerícia, são os indivíduos humanos de mais agradável aspecto, ordinários objectos das suas inclinações.»
Isto é bonito; mas custa a perceber. Era o caso do padre, puxado algum tanto ao lirísmo teutónico, dizer com Petrarca:
Intendemi chi púo che m'intend'io.
Refere-nos a história dum delfim chamado Simão, o qual amava um lindo menino, e andava com ele às cavaleiras de praia em praia, até que, morrendo o menino, o delfim «faleceu de amores depois de uma vida toda de afectos!» Que delfim Simão! Faz chorar a gente com o seu falecimento de amores!
Outro delfim, que por nome não perca, praticava familiarmente com os soldados do procônsul de África Flaviano. Este romano deu-lhe na veneta untar de certos unguentos o delfim, os quais tiraram os sentidos ao amável bicho. «Despertado do letargo, diz o lente de Coimbra em 1743, envergonhou-se de sorte que se ausentou por muito tempo para o profundo do mar.»
Que pudor tinha o peixe! Envergonhou-se de desmaiar! Parece que a vergonha já naquele tempo se tinha feito aquática!
Passados tempos, voltou o delfim desenvergonhado, e «continuou as suas antigas afectuosas expressões.»
Outro delfim, apaixonado e não correspondido de um menino de singular beleza, deu consigo moribundo numa praia, à vista do ingrato amado e expirou, dando «eterna fama às mesmas praias, com mais extremosa fineza do que a celebrada ama de Eneias às de Caeta».
Se estes peixes morrem assim de amores da gente qual não será a ternura do seu afecto às suas delfinas? Como nem todos são Simões, algum haverá que possa chamar-se Romeu, outro Paulo, outro Werther, analogias deduzidas das suas meiguices e choradeiras. Aquilo é que há-de ser amarem-se idealmente, lá onde o pudor é do feitio que vimos! O tempo não vai senão para eles. Os peixes a quererem-se como os humanos já não se querem; e nós, humanos e cristãos, a amarmo-nos, pouco mais ou menos como carapaus e tainhas! O reviramento é completo!
Camilo Castelo Branco,
THE ISLAND
Weep, violin and viol,
Low flute and fine bassoon.
Lo, an enchanted isle
Moon‑bound beneath the moon!
My dream‑feet rustle through it
Chequered by shade and beam.
Oh, could my soul but woo it
From being but a dream!
Violin, viol and flute.
Lo, the isle hangs in air!
Through it I wander, mute
With too much loss of care.
And the air where't doth float
No air's, but light of moon.
Its paths are known to each note
Of viol and bassoon.
Yet is it real, that isle,
As our clear islands mortal?
Do flute, bassoon and viol
But ope with sound a portal,
And show, somehow, somewhere,
To what looks out from me
That pendulous island rare
In a moon‑woven sea?
Maybe 'tis truer than ours.
How true are these? But lo!
That isle that knows no hours
Nor needeth hours to know,
And that hath truth and root
Somewhere known of the moon,
Fades in the fading of flute,
Violin and bassoon.
As mulheres e os talheres
não têm nada em comum,
elas são de carne e osso
e algumas gostam de rum.
Algumas gostam de rum
outras nem sabem que há,
às vezes uma mulher
o que quer ser é má.
O que quer ser é má,
onde quer estar é lá,
põe-se a andar e não volta,
sem sabre aonde irá?
Sem sabre aonde irá,
não pede nada a ninguém,
depois de dar uma volta
sente-se muito bem.
Sente-se muito bem
e dança escada acima,
não sabe que idade tem,
é decerto uma menina.
O mundo com nomes surgiu de um mundo sem nomes, é razoável prever um mundo onde já não há nomes
A calma paciência
de quem escreve à mão
um longo poema
de sol e sossego
numa casa
levantada do chão
com janelas para o céu
e para uma questão
que se põe a toda a gente
sem palavras
e com elas
não se consegue
responder.
As nuvens não são animais, nem plantas, nem minerais. São seres ocasionais. Estavam a olhar para mim lá de trás da serra.
A poetisa foi entrevistada para a televisão e perguntaram-lhe quando e onde é que tinha momentos de inspiração. Ela teve vergonha de dizer que às vezes era quando lia os ambientadores da casa-de-banho e, como não queria dizer isto, de repente ficou sem fala. Finalmente conseguiu lembrar-se de dizer que a inspiração não fazia inscrição prévia.
A árvore está a
Ramar
A menina está a
Remar
A senhora está a
Rimar
A marinheira está a
Rumar