Vladimir Kush

Vladimir KUSH, Ripples on the Ocean, (Ondulações no Oceano)

Rumi

A vela do navio do ser humano é a fé.
Quando há uma vela, o vento pode levá-lo
A um lugar após outro de poder e maravilha.
Sem vela, todas as palavras são ventos.

Jalāl-ad-Dīn Muhammad RUMI




sexta-feira, 2 de dezembro de 2016

Herder



Da praia longínqua, na areia doirada,
O Cisne pensava, fitando a Alvorada:

– «Que imensa ventura, na minha mudez,
Se dado me fosse cantar uma vez!

Meu canto seria, na luz do arrebol,
Dos hinos mais altos à glória do Sol...

Não é das gaivotas e gansos do lago
O canto que em sonhos ardentes afago;

É quando nos bosques as aves escuto
Que a inveja confrange minha alma de luto.

Se a Aurora se lança do cume dos montes,
Até de alegria murmuram as fontes;

Só eu, passeando o meu tédio supremo,
Nem rio, nem choro, nem canto, nem gemo.

O Sol, que já vejo surgindo do Mar,
Tem dó de quem, mudo, não pode cantar!» –

E o Cisne, em silêncio, chorava, escutando
A orquestra das aves que passam em bando.

Das águas rompia a quadriga de Apolo,
E o pobre a cabeça escondia no colo...

Mas Febo detém-se nas nuvens ao vê-lo,
Com feixes de raios no fulvo cabelo,

E diz-lhe, sorrindo, num halo de fogo:
– «No Olimpo sagrado ouviu-se o teu rogo...» –

E nesse momento a Lira Sem Par
Da mão luminosa deixou resvalar...

O Cisne, orgulhoso da graça divina,
Da Lira de Apolo as cordas afina,

E rompe cantando... Calaram-se as fontes,
Calaram-se as aves... As urzes dos montes

Tremiam de gozo a ouvi-lo cantar...
E o vento sonhava na espuma do Mar.

O Cisne cantava, tirando da Lira
Um hino que nunca na terra se ouvira;

Não pára, nem sente, na sua emoção,
Que a vida lhe foge naquela canção.

Mas quando, entre nuvens, a tarde caía
no enlevo do canto que a essa hora gemia,

E Apolo no seio de Tétis desceu,
O pobre do Cisne, cantando, morreu...

Gemeram as aves; choraram as fontes;
Torceu-se nas hastes a giesta dos montes,

E o mar soluçava na tarde sombria,
Que o manto de luto com astros tecia.

Solícita espera-o, das águas à beira,
Do Cisne, já morto, fiel companheira;

Espera que o Esposo de pronto regresse,
Mas treme e suspira, que a Noite já desce...

As águas luzentes parecem-lhe, ao vê-las,
Um pano de enterro picado de estrelas.

Então, no seu luto, sentindo que morre,
Oceanos e praias distantes percorre;

Mergulha nas águas, coleia nas ondas,
Espreita as galeras de velas redondas,

Que ao longe parece que vão a voar...
E o Cisne não volta, não pode voltar!

Chorosa viúva, nas águas desliza,
Levada na fresca salsugem da brisa...

No seu abandono nem sente canseira;
Caminha, caminha, fiel companheira,

Chorando o perdido, desfeito casal...
Tão funda era a mágoa, tão grande o seu mal,

Que o peito sentindo de dor estalar,
– De dor e de angústia começa a cantar!

E canta com tanta ternura e paixão,
Que a Vida lhe foge naquela canção.

As aves despertam; calaram-se as fontes
Nas hastes tremiam as urzes dos montes;

A Lua escutava; detinha-se a Aurora,
E as vagas gemiam no vento que chora...

Na terra, no espaço, nos astros, no céu,
Mais alta harmonia ninguém concebeu;

E os Deuses recebem, ouvindo-a, a chorar,
A alma do Cisne que expira a cantar...

Desde esse momento, no Olimpo onde entraram,
Em honra dos Cisnes que tanto se amaram,

Das almas que foram leais e sinceras,
se Vénus se mostra, surgindo da bruma,
São eles que tiram, nas altas esferas,
A concha de nácar, cercada de espuma...


António Feijó, Sol de Inverno, 1922


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