Vladimir Kush

Vladimir KUSH, Ripples on the Ocean, (Ondulações no Oceano)

Rumi

A vela do navio do ser humano é a fé.
Quando há uma vela, o vento pode levá-lo
A um lugar após outro de poder e maravilha.
Sem vela, todas as palavras são ventos.

Jalāl-ad-Dīn Muhammad RUMI




sexta-feira, 28 de setembro de 2012

o dia em que a Princesa devia despertar

"Ora os cem anos tinham acabado de passar, e chegara o dia em que a Princesa Adormecida devia despertar. Quando o príncipe se aproximou da sebe de roseira, viu-a toda em flor, com enormes rosas muito lindas que lhe abriam passagem sem o ferir e se tornavam a fechar em sebe assim que ele passava.

Nos pátios, o príncipe viu os cavalos e os cães mergulhados no sono. No telhado, estavam as pombinhas com as cabeças debaixo da asa. E, quando entrou no castelo, viu as moscas adormecidas nas paredes... Junto ao trono, jaziam o rei e a rainha. Na cozinha, estava o cozinheiro com a mão levantada como se fosse bater no ajudante, e a cozinheira estava sentada tendo ao colo uma ave que estivera a depenar.

O príncipe continuou a avançar. Estava tudo tão quieto que podia ouvir a sua própria respiração. Chegou, por fim, à torre e abriu a porta do quartinho onde estava deitada a Princesa Adormecida. Era tão linda que o príncipe não podia desviar a vista para olhar em redor. Inclinou-se e deu-lhe um beijo.

Mal a tocou, a Princesa Adormecida abriu os olhos e olhou-o com ternura. Depois desceram juntos, o rei e a rainha acordaram, assim como todos os cortesãos que olhavam, muito admirados, uns para os outros. Os cavalos no estábulo sacudiram-se, os galgos começaram a pular, as pombas no telhado tiraram a cabeça de sob as asas e voaram para os campos. As moscas nas paredes puseram-se a andar, o fogo na cozinha cresceu e cozinhou a comida. A carne assada voltou a dar estalidos e o cozinheiro sacudiu com tanta força o ajudante que este gritou, enquanto a cozinheira acabava de depenar a ave que tinha ao colo.

Celebrou-se então, com todo o esplendor, o casamento do príncipe com a princesa, e viveram ambos muito felizes até morrerem."

Irmãos Grimm, A Princesa Adormecida, p. 10 a 15, Electroliber Limitada, Lisboa-Porto-Faro-Funchal-Lourenço Marques, s/data

sexta-feira, 21 de setembro de 2012

imperfeito de cortesia

o pretérito imperfeito diz-se imperfeito no sentido de "inacabado", considera-se que "fez" é uma acção perfeita porque foi terminada e "fazia" é imperfeita
o pretérito imperfeito também pode ser usado em vez do presente para suavizar um pedido, neste caso chama-se imperfeito de cortesia: "queria um pão de quilo" em vez de "quero um pão de quilo"
também a gramática é imperfeita no sentido em que está sujeita a alterações, não está acabada... toda a ciência supostamente aceita sempre que o conhecimento não é definitivo e que novas pesquisas podem alterar o que se julgava saber - nem sempre porém cientistas e leigos têm em conta a fundamental incerteza científica nem a cortesia, não se costuma no entanto dizer que o dogmatismo é imperfeito, pelo contrário, parece definitivamente acabado ;)

quinta-feira, 20 de setembro de 2012

a razão pela qual não se vê maldade em Amã


Era uma vez uma velha mulher que se dirigia do campo à cidade de Amã para visitar o seu neto. Era verão, e no encalorado e poeirento caminho encontrou-se com um homem de semblante cansado e ao mesmo tempo sinistro, que se cobria com um capote negro.
"Bom dia", disse a mulher, porque não tinha nada melhor para dizer e as pessoas do campo sempre se cumprimentam entre si.
"E um mau dia para a senhora!", respondeu o homem.
"Que modo bem educado de se falar com as pessoas!" Disse a velha senhora. "Que tipo de homem é você para falar assim aos filhos de Adão?".
"Eu sou Lúcifer! E odeio os descendentes de Adão".
A velha mulher não ficou nem um pouco assustada.
"E por que você está a caminho da cidade grande?" - perguntou a velha.
"Oh, tem muitas coisas que posso fazer num lugar assim". Disse o diabo.
"Você não parece tão diabo assim e creio que posso igualar qualquer coisa que você faça, a qualquer hora".
"Muito bem, eu lhe darei três dias em Amã e se você puder fazer coisas piores do que eu, ai então deixarei a cidade tranqüila pelo resto dos meus dias".
Assim fecharam o trato e os dois chegaram juntos à cidade.
"Quando vai começar"? Perguntou o diabo, porque estava ansioso para ver umas maldades.
"Começarei logo, e você pode me observar, supondo que possa ficar invisível".
"Assim"? Perguntou o diabo.
E a velha se deu conta que o diabo tinha desaparecido de sua vista, ainda que pudesse sentir seu hálito quente no pescoço.
"Agora, mãos a obra", disse ele asperamente.
A velha dirigiu-se à tenda de um dos maiores comerciantes de tecidos finos da cidade e sentou-se na entrada, pedindo ao comerciante que lhe mostrasse alguma peça de seda realmente boa.
"Tem que ser algo verdadeiramente insólito. Meu neto está enamorado de uma certa mulher casada e quer fazer-lhe um presente de que ela nunca se esqueça, de forma a abrandar o seu coração. Ela disse que só se entregará a ele se tiver uma peça da mais formosa seda que se possa encontrar".
"Para que a queres não é assunto meu, de modo que, por favor, não me contes os detalhe sórdidos", replicou o homem. "Mas acontece que tenho aqui uma peça do mais fino tecido do mundo. Até outro dia havia duas peças. Então vendi uma para o Palácio Real, de forma que podes imaginar a qualidade e formosura do tecido".
Enquanto examinava o corte de seda a velha disse:
"É um tecido muito caro e é bem possível que o compre. Mas, como é que não me estás tratando com o respeito que é devido a um cliente valioso?"
"Que queres dizer?", perguntou o comerciante.
"Ao menos deverias pedir um narguilé para mim, de maneira que eu possa fumar enquanto me decido"...
O mercador mandou buscar imediatamente um narguilé com carvão ardente no recipiente. Também colocou próximo à velha um prato de pastéis de mel, 'baklavas'.
Murmurando para si a velha manuseou o tecido, comeu os pastéis e, entre uma coisa e outra, deu umas tragadas no narguilé. De repente o comerciante percebeu consternado que ela havia passado um pouco de mel de seus dedos para o valioso tecido e, pior ainda, inclinado o cachimbo permitindo que uma brasa caísse na seda, fazendo um buraco na mesma.
"Ai, estúpida mulher!", exclamou o mercador. "Estás arruinando o tecido"!
"De modo algum. Tudo o que tenho a fazer é cortá-lo de modo certo e assim eliminar a mancha e o buraco, porque vou comprá-lo de qualquer maneira. Quanto disseste que valia"?
"Cem dinares", disse ele, esperando fechar negócio em cinqüenta, mas a velha aceitou imediatamente sem regatear, pagou-lhe em dinheiro e se foi da tenda.
Quando descia a rua o diabo sussurrou ao seu lado:
"Eu não chamaria a isso um truque. É verdade que você lhe deu um pequeno susto, mas lhe pagou muito e, ele pensa que você é uma tola. Ele é mais diabo que você"!
"Silêncio!", ciciou a velha, "e tenha um pouco de paciência, por favor. Veja o que vou fazer agora."
Dizendo isso, a velha começou a perguntar as pessoas em um café até conseguir o endereço da casa do mercador de tecidos.
Era uma casa grande e de aparência opulenta. A velha se deteve ali, salmodiando orações, e logo chamou à porta.
A mulher do comerciante veio atender e perguntou:
"Quem está ai e o que deseja?"
"Que a paz esteja contigo, generosa dama", disse a velha dirigindo-se à janela, "sou apenas uma pobre mulher do campo que veio visitar o seu filho. Encontro-me aqui na rua bem na hora das minhas orações especiais e não posso achar um lugar tranqüilo e limpo para recitá-las".
A esposa do comerciante, convidou a piedosa mulher a entrar, conduzindo-a até uma espaçosa sala no andar térreo.
"Generosa mulher, como último favor, te peço um tapete de oração em que possa me ajoelhar".
A esposa do comerciante procurou ao redor, voltou com o 'sajjadah' de seu esposo e o entregou à velha.
A velha fingia dizer as orações enquanto a mulher do comerciante se retirava da sala. Então, a velha enrolou o tapete junto com o tecido que havia comprado e o devolveu com mil palavras e gestos de agradecimento e humildade.
Ao sair da casa o diabo novamente lhe perguntou, irritado, "que tipo de jogo é esse?", a velha respondeu do mesmo modo que antes.
Quando o comerciante voltou para casa à noite e pegou seu tapete para fazer as suas orações, a peça de tecido caiu. Tinha a mesma marca e o mesmo buraco daquela que tinha sido vendida à velha mulher. A peça, ele lembrava, era um presente para uma mulher casada que, em troca, se entregaria ao seu neto...
Sua própria esposa! O comerciante arde em fúria, enquanto o diabo o contemplava, invisível, ele expulsou sua mulher de casa, recusando-se a escutar qualquer coisa que ela dissesse.
"Isto está melhor!", ria para si o diabo.
A velha seguia a perplexa esposa para ver aonde ela ia e, viu que corria para casa de sua prima, onde se jogou sobre uma cama soluçando amargamente e recusando-se a dar qualquer explicação a quem quer que fosse.
Na manhã seguinte a velha foi ver seu neto, um robusto jovem luxurioso, que não era melhor do que parecia ser.
"Vem, meu querido e formoso jovem", vou te apresentar uma dama bela e inteligente que está solitária e perplexa..."
Ela levou o jovem até a casa onde a esposa do comerciante estava descansando e aproveitando-se da ansiedade e confusão da dama, insistiu para que os dois permanecessem juntos. Tal era a perplexidade de ambos que simplesmente se sentaram no aposento olhando um para o outro, como se houvessem sido hipnotizados pela velha.
A velha bruxa correu então à tenda do comerciante. Logo que a avistou ele começou a soluçar e golpear o peito, gritando:
"Oh, mensageira da má sorte! Por que me escolheste para ser o instrumento de sedução da minha própria esposa, por meio do teu neto infernal e mal-nascido? Por que regressaste para me atormentar? Vá embora antes que eu te mate! E ainda disse muito mais no mesmo estilo.
A velha mulher se manteve firme até que o comerciante ficou sem fôlego e, então disse:
"Oh rei dos comerciantes! Realmente não tenho ideia do motivo de tuas palavras. A única coisa que posso dizer é que estou aqui para te pedir a devolução da minha seda, que parece deixei cair por um descuido em tua casa. Mas, não há ninguém lá".
O diabo começou resfolegar na orelha da velha, quando escutou isso, sufocando de riso.
"Que?! Queres dizer que não era minha esposa que tinha de ser seduzida por meio da seda?".
"Claro que não ! O que aconteceu é que, por casualidade, encontrei tua casa quando estava procurando um lugar para rezar e, por negligência, deixei o tecido ali..."
Quase fora de si com o que ainda lhe restava de sua fúria, com pesar e angustia pela injustiça que havia cometido contra sua esposa, o mercador exclamou:
"Oh, se eu pudesse fazer regressar a minha amada esposa!"
"Bem, pode ser que eu seja capaz de te ajudar nisto."
"Se pudesses fazê-la regressar, amável mulher, eu te daria mil dinares de ouro!
"Feito!", exclamou a velha bruxa e saiu precipitadamente da tenda.
"Não me diga que vai fazer um favor a alguém sua velha doida", sussurrou o diabo no seu ouvido.
"Afaste-se de mim, estúpido, deixa que uma verdadeira especialista possa fazer o seu trabalho!", guinchou a bruxa, enquanto um ar de total astúcia se espalhou sobre o seu rosto.
O diabo a seguiu furtivamente quando ela se dirigiu à prisão onde seu neto e a esposa do comerciante estavam detidos.
Assim que avistou o carcereiro na porta da prisão, a velha começou um jogo de astúcia e discussão.
"Oh vós, o mais nobre dos guardiães da justiça do rei! E pensar que na minha idade fui levada a isto... Mas, quem sabe, bom senhor, amável e ilustre cavalheiro, vós sejais capaz de me ajudar..."
A velha mostrou um dinar de ouro e, o carcereiro começou a olhá-la com maior atenção.
"O que queres?", perguntou asperamente.
"Somente que me seja permitida a entrada por alguns momentos para ver o meu neto, que foi, com certeza, justamente preso e entregue a vosso cargo, bravo defensor da justiça!".
"Bem, se tiveres outra moeda igual a esta quem sabe se posso arranjar alguma coisa"
Rápido como um raio, a velha lhe passou duas peças de ouro e o carcereiro a deixou entrar.
Assim que chegou ao calabouço onde o par de acusados estavam presos em celas contíguas, a velha se dirigiu ao lugar onde se encontrava a esposa do comerciante e destrancou a porta.
"Apressa-te, pega o meu manto e o meu véu e dá-me os teus, sai da prisão fingindo que sou eu e reúne-te ao teu esposo, isto é, se estás disposta a me recompensar por te haver salvo e fazer com que ele te perdoe".
"Tenho mil peças de ouro em casa. Isto será bastante?".
"Muito bem , isto será bastante, mas te advirto de que não voltes atrás na tua palavra, ou terei de dizer ao mercador que no fim de tudo eras realmente culpada", ameaçou a velha.
Desse modo a mulher do comerciante colocou as roupas da velha bruxa, que se vestiu como a jovem mulher. Então ela e seu neto ficaram no calabouço enquanto a mulher se apressava a regressar para casa, onde encontrou seu esposo, que se encheu de alegria.
Nessa mesma tarde, de acordo com a lei, o magistrado examinador visitou o cárcere, averiguando se havia motivo verdadeiro para a prisão dos detidos. Quando chegou em frente à cela onde se encontrava a velha, perguntou:
"Por que prenderam estas pessoas?"
"Foram presas sob acusação imoralidade, senhor juiz."
A velha retirou o véu e choramingou:
"Nobre juiz, sou uma mulher de 90 anos de idade e este é o meu neto, que não tem mais do que 16 anos. Aqui estão os papéis para prová-lo. Estávamos sentados juntos, conversando inocentemente, quando algum infiel nos denunciou à polícia com esta acusação absurda. por favor, nobre senhor, ordene nossa libertação agora mesmo, porque já sofremos bastante."
O magistrado, furioso, voltou-se para o carcereiro e o policial encarregado do caso e gritou:
"É este o modo pelo qual a justiça é feita em nosso país? Libertem está anciã e o seu jovem neto imediatamente! E em seguida, disse à sua escolta: "Dêem dez chibatadas no carcereiro e no policial!"
Quando a velha mulher e o seu neto estavam se afastando da prisão, encontraram o diabo.
"Estou indo, porque depois de ver tal actuação sei que não posso competir com você!"
O diabo abriu suas asas e voou de volta a jehennúm, a morada infernal.
Esta é a razão pela qual não se vê maldade em Amã, já que a velha mulher não se dispôs a tentar novamente.

Retirado do livro “Histórias da Tradição Sufi” - Edições Dervish – 1993 – Instituto Tarika

O Diabo e a Velha (ligeiramente alterado, sobretudo a grafia do nome da cidade, que foi alterada para Amã)

quarta-feira, 19 de setembro de 2012

pingentes de gelo

Na Finlândia:  

«Chegou o domingo. Um daqueles húmidos domingos de Abril em que já não podia andar-se sem perigo por cima do gelo. Aqui e além tinham-se formado fendas na crosta do lago e até já pequenos blocos se iam desagregando. Passara o inverno. Das goteiras dos telhados escorria a água, fazendo no gelo pequenas covas. A temperatura baixava com a aproximação do crepúsculo e começavam imperceptivelmente a formar-se delicadas estalactites nos cantos das goteiras. De manhã o Sol brilhava nos pingentes de gelo, nas folhas dos álamos e nas frontarias das casas.»

Frans Eemil Sillanpää, Silja, Editorial Inquérito, 1969, p. 140

fotografia de Lavonardo, aqui

segunda-feira, 17 de setembro de 2012

fora de ideias

"Fora de ideias de agir bem e agir mal,
há um campo. Vou lá ter contigo."
RUMI

Tradução da tradução de Coleman Barks para inglês:
"Out beyond ideas of wrongdoing and rightdoing,
there is a field. I will meet you there."

quinta-feira, 13 de setembro de 2012

alecrim

o alecrim terá sido a primeira canção que me tocou, gostava da música, da letra e de imaginar o monte
não sabia como era o alecrim nem a sua flor mas cantava na imaginação e imaginava comovidamente uma paisagem - sem incomodar ninguém

quarta-feira, 12 de setembro de 2012

prisioneiro

Louis Dodier em prisioneiro (Louis Dodier en prisonnier), 1847

fotografia de Louis Adolphe Humbert de Molard

informações, em francês, no site do Museu d'Orsay, carregar aqui

terça-feira, 11 de setembro de 2012

não alimenta mas brilha

Pollia condensata

Fotografia de David Gwynne-Evans, de 21 de Maio de 2010, em Monte Mabu, Moçambique.

Investigadores do Jardim Botânico de Kew descobriram em 2009, através do Google Earth, que o Monte Mabu nunca tinha sido explorado por cientistas.

Considerada a matéria viva mais brilhante de todas, o fruto da Pollia condensata atraiu recentemente a atenção dos cientistas. Mais informações, em inglês, aqui.

sábado, 8 de setembro de 2012

sem dar por isso

«Dinis - Era uma vez um homem chamado Papin. Era francês e médico. Mas não tinha jeito nem gosto para tratar os doentes. Estava sempre a cismar noutras coisas muito diferentes. E tanto tempo cismou cismou que acabou por inventar um aparelho de que ninguém ainda se tinha lembrado até então.

João - Aposto que era uma máquina para fazer andar os navios.

O Sr. Novais, rindo - O tal Papin era muito esperto. Mas olha que era preciso uma esperteza muito grande para ele inventar assim, sem mais nem menos, uma coisa tão complicada.

Dinis - O que ele inventou foi uma panela de cozer carne.

Os pequenos olharam uns para os outros e desataram a rir.

João, rindo - Olha que grande habilidade! Então ninguém sabia cozer carne ainda naquele tempo?

Dinis - Mas era uma panela especial. Imagina tu duas panelas, uma dentro da outra; na de fora deitava-se água, na de dentro punha-se a carne; depois atarraxava-se uma tampa por cima e punha-se ao lume. A água fervia, fervia. E a carne na panela de dentro ia-se cozendo... tanto e tanto até se derreter; e até os ossos se derretiam, o que nunca podia suceder se a carne estivesse dentro de água...

Rodrigo - Há uma coisa que eu não percebo. O pai diz que o tal Sr. Papin atarraxava uma tampa muito bem atarraxada na panela e que a água lá dentro fervia, fervia... Então como é que não ia tudo pelo ar?

João - Porque é que havia de ir pelo ar se não havia pólvora nem dinamite?

Rodrigo - Então eu não tenho visto lá na cozinha! Quando as panelas estão ao lume a ferver e começam a deitar fumo, principia logo a tampa aos saltinhos empurrada pela força do vapor de água e, se a cozinheira não deixa uma gretinha para o vapor se escapar, a tampa salta por aí fora.

João - Eu nunca vi nada disso. É uma invenção tua.

Rodrigo, muito corado - Não é, não, senhor. Eu vou contar uma coisa que nunca disse, mas que vou dizer agora, já que não me acreditas. Uma vez estava uma chaleira ao lume com água a ferver, a ferver. Estava muito bem tapada, mas o fumo da água saía com muita força pelo bico da chaleira. Eu fiz uma rolhinha com miolo de pão e meti-a pelo bico da chaleira e fui metendo, metendo, apertando quanto pude... por sinal que me escaldei. De repente... zás! quando eu menos esperava, saltou por aí fora a tampa da chaleira com um grande estrondo e caiu por cima do fogão, tudo isto no meio de uma fumaceira!... Larguei a fugir e nunca mais disse nada. Apanhei um susto!

Maria, rindo - Eu bem me lembro agora de a cozinheira me vir contar que tinha encontrado o bico da chaleira atafulhado de miolo de pão... Nunca soubemos quem tinha sido.

Rodrigo, corando - Se me tivessem perguntado, eu tinha dito. Ninguém me perguntou nada!

Dinis - O Rodrigo tem razão, mas o que eu não disse é que na tampa da tal panela havia uma válvula... Sabem o que é uma válvula?

Rita - É uma tampinha que entra e sai com muita facilidade, sem se fazer força nem ser preciso dar-se jeito nenhum, não é?

Dinis, rindo - Pouco mais ou menos, é. Quando o vapor de água ganhava muita força, empurrava a válvula e escapava-se. E então o Papin prendeu a essa válvula um braço de ferro com um certo peso na ponta calculado para que o vapor só pudesse empurrar a válvula quando tivesse muita força e que portanto a carne já estivesse bem cozida.

O Sr. Novais - Com a história da carne ninguém se importou muito mas aquele negócio do vapor da água e da válvula é que foi o primeiro passo para se chegar à máquina a vapor.

Rodrigo, triunfante - Então eu não disse que a máquina que vimos lá em baixo havia de ser uma coisa de lume e de água a ferver?

João - Essa é a primeira história. Agora a segunda.

Dinis - Passaram-se muitos anos. O Papin morreu e foram aparecendo vários homens curiosos e muito inteligentes, que desenvolveram a ideia do Papin e a aplicaram para usos de verdadeira utilidade. Eram já máquinas a vapor; bombas para tirar água mas muito imperfeitas. Era preciso estar ali sempre uma pessoa a abrir ora uma torneira ora outra para a máquina funcionar regularmente. Ora um dia, há dezenas de anos, estava um rapazito lá em Inglaterra chamado Potter encarregado de abrir as tais torneiras. O garoto estava maçadíssimo; ouvia lá na rua os seus companheiros a rir e a brincar, fazendo brincadeiras e jogos, e ele sem se poder tirar dali! Que havia de imaginar? Arranjou uma corda e lá atou conforme pôde uma ponta numa torneira, outra ponta na outra e prendeu a corda lá em cima numa outra peça da máquina que pelo seu próprio movimento, puxando ora um lado da corda, ora o outro ia abrindo e fechando só por si as duas torneiras. O rapaz ficou contentíssimo. Atirou com o boné ao ar em sinal de alegria deu quatro pinotes e foi ter com os seus companheiros, divertindo-se com eles todo o dia sem se lembrar mais da máquina.

O Sr. Novais - Este Potter, este garoto, sem dar por isso fez mais pela máquina a vapor do que muitos homens que se tinham morto de trabalho.

Rodrigo - Sim, eu faço ideia que depois os sábios haviam de aproveitar a descoberta da corda para evitar a maçada do empregado ali a abrir e fechar torneiras.»

Virgínia de Castro e Almeida, Céu Aberto, p. 102 a 105, Clássica Editora, Lisboa, 1988, 12ª Edição

a primeira edição foi publicada em 1907

terça-feira, 4 de setembro de 2012

um modesto jardineiro

"No local onde actualmente se encontra o complexo da Estufa Fria existia, na viragem do séc. XIX, uma pedreira de onde se extraía basalto. Devido à existência de uma nascente de água que comprometia a extracção da pedra, a pedreira deixou de laborar. A cova da pedreira foi então aproveitada por um modesto jardineiro para albergar espécies vegetais oriundas do mundo inteiro, que iriam servir no plano de arborização da Avenida da Liberdade. A 1.ª Guerra Mundial atrasa este plano e as plantas vão criando raízes no pequeno local abrigado. Em 1926, o arquitecto e pintor Raul Carapinha, tendo ali encontrado um agradável espaço verde, idealiza um projecto para o transformar na Estufa, a qual é concluído em 1930 e inaugurado oficialmente três anos depois."

Excerto da História da Estufa Fria no site da Câmara Municipal de Lisboa - Lisboa Verde

Na página "Lisboa Cultura" no facebook esta fotografia foi publicada como sendo de 1930.