Vladimir Kush

Vladimir KUSH, Ripples on the Ocean, (Ondulações no Oceano)

Rumi

A vela do navio do ser humano é a fé.
Quando há uma vela, o vento pode levá-lo
A um lugar após outro de poder e maravilha.
Sem vela, todas as palavras são ventos.

Jalāl-ad-Dīn Muhammad RUMI




quarta-feira, 31 de março de 2010

o último dos Quatro Quartetos de T. S. Eliot

Little Gidding

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I

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A Primavera do meio do Inverno é uma época em si

Sempiterna embora encharcada para o pôr do Sol,

Suspensa no tempo, entre pólo e trópico,

Quando o curto dia está mais brilhante, com geada e fogo

O sol breve arde no gelo, na poça de água e nos fossos da estrada

Reflectindo num espelho aquático

Um clarão que é cegueira no começo da tarde.

E um brilho mais intenso que o lume do ramo, ou o braseiro,

Agita o espírito baço; nenhum vento, mas fogo de Pentecostes

Na época escura do ano. Entre degelo e gelo

A seiva da alma estremece. Não há cheiro de terra

Ou cheiro de coisas vivas. Este é o da época da Primavera

Mas a cláusula do tempo. Agora, a baia de buxo

Se embranquece uma hora com flores transitórias

De neve, uma eflorescência mais súbita

Que aquela do Verão, nem florescendo nem se fanando,

Não no esquema de uma geração.

Onde está o Verão, o inimaginável

Verão zero?

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..........Se viestes por este caminho

Tomando o caminho que naturalmente tomarias,

Do lugar de onde naturalmente virias,

Se vieste dum lugar na época de Maio, encontrarias os buxos,

De novo brancos, em Maio, com doçura voluptuária.

Seria o mesmo no fim da jornada

Se viesses à noite como um rei quebrado,

Se viestes à noite, não sabendo porque viestes

Seria a mesma coisa, quando deixamos a estrada branca

E nos viramos para trás, para o chiqueiro dos porcos, para a fachada desbotada

E a pedra tumular. E aquilo que pensastes que procuráveis

É apenas uma concha, uma escória de significado

Cujo propósito se quebra somente quando é realizado,

Quando muito. Ou não tinha propósito

Ou o propósito está talvez para além do que pensavas

E é alterado na realização. Há outros lugares

Que também estão no fim do mundo, alguns nas faces do tempo

Ou por cima de um lago escuro, num deserto ou numa cidade

Agora e na Inglaterra.

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...........Se viestes por este lado,

Tomando qualquer caminho, começando onde quer que seja,

Em qualquer tempo ou em qualquer estação,

Seria sempre a mesma coisa, teríamos de afastar

O sentido e a moção. Não estais aqui para verificar,

Instruir-vos, uma informação de curiosidade,

Ou levar relatório. Estais aqui para ajoelhar

Onde a oração é válida. E a oração é mais

Do que uma ordem de palavras, a ocupação consiste

Do espírito que reza, ou o som da voz que reza

E aquilo para que os homens não tinham palavra, quando vivos,

Podem dizer-vos, estando mortos: a comunicação

Dos mortos tem a língua-de-fogo para além da linguagem dos

Aqui, vivos, a intenção do momento eterno

É a Inglaterra e nenhures. Nunca e sempre.

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II

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Cinzas na manga de um velho

É toda a cinza que as rosas queimadas deitam

A poeira no ar suspensa

Marca o lugar onde uma história acabou.

A poeira inspirada por uma casa -

A parede, o lambrim e a ratazana.

A morte de esperança e do desespero,

..........Isto é a morte do ar.

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Há sangue e seca

Sobre os olhos e sobre a boca

Aqui morte e areia suspiram.

O solo sem tripas e enrugado

Boceja com o espectáculo do esforço,

Ri-se sem alegria.

..........Isto é a morte da terra.

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A água e o mar sucederam

À cidade, à pastagem e à erva.

A água e o fogo zombam

Do sacrifício que negámos.

A água e o fogo apodrecerão

Nos alicerces delapidados que esquecemos

De santuário e do coro.

..........Esta é a morte da água e do fogo.

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Na hora incerta antes da manhã

..........Perto do fim da noite interminável

..........No recorrente fim do interminável

Depois que a escura pomba de língua flamejante

..........Passou por baixo do horizonte do seu lar

..........Enquanto as velhas folhas faziam barulhos de lata

Sobre o asfalto onde não havia outro som

..........Entre três distritos de onde nascia o fumo

..........Encontrei encontrei um que ia a caminho, parando e outras vezes com pressa,

Como se fosse soprado para mim com as folhas metálicas

..........Antes de vento da última madrugada, que não resistia.

..........E como que fixo com o rosto virado para baixo

Que apontava o escrutínio com o qual desafias

..........O estranho que acabamos de conhecer no crepúsculo que desmaia

..........Reparei no olhar sombrio dalgum mestre morto

A quem eu já conhecera, esquecido, meio lembrado

..........Tanto um como muitos; nas feições castanhas e queimadas

..........Os olhos de um compósito fantasma familiar

Tão íntimo quanto inidentificável.

..........Então assumi um duplo papel, e gritei

..........E ouvi a voz do outro chamar: «O quê! Vós estais aqui?»

Embora não estivéssemos. Eu era ainda o mesmo

..........Conhecendo-me e contudo sendo algo de outrem -

..........E ele com um rosto ainda em formação; contudo as palavras foram suficientes

Para compelir o reconhecimento que precediam.

..........E assim, fazendo a vontade ao vento comum,

..........Demasiadamente estranhos um para o outro para não se parecerem,

De acordo com esta intenção no tempo

..........De não nos encontrarmos em nenhum lugar, nem antes nem depois

..........Pisámos o empedrado numa patrulha muda.

Eu disse: «O espanto que eu sinto é fácil,

..........E contudo a facilidade é causa do espanto. Portanto fala:

..........Posso não compreender, não me lembro.»

E ele: «Não estou ansioso de ensaiar

..........O meu pensamento e a minha teoria que esqueceste.

..........Essas coisas serviram o seu propósito: deixa-as estar.

O mesmo se diz das vossas, e rezai para que sejam perdoadas

..........Pelos outros, como rezo para que perdoeis

..........Tanto o mal como o bem. A fruta da época passada está comida

E o animal saciado dará pontapés no balde vazio

..........Pois as palavras do próximo ano esperam outra voz

Mas, como a palavra agora não apresenta nenhum obstáculo

..........Ao espírito não saciado e peregrino

..........Entre dois mundos tornados parecidíssimos,

Assim eu encontro palavras que nunca pensei dizer

..........Em ruas que nunca pensei revisitar

..........Quando deixei o meu corpo num país longínquo.

Dado que a nossa preocupação era a palavra, e a palavra nos impelia

..........A purificar o dialecto da tribo

..........E preparar o espírito a um relance para o passado e para o futuro,

Deixai-me revelar os dons reservados para a idade

..........Impor uma coroa sobre o esforço de uma vida.

..........Primeiro, a ficção fria de um sentido moribundo

Sem encanto, não oferecendo nenhuma promessa

..........A não ser a amarga insipidez do fruto fantasma

..........Quando a alma e o corpo começam a separar-se.

Em segundo lugar, a consciente impotência da raiva

..........Perante a loucura humana, e a laceração

..........Do riso ao que deixa de nos divertir

Por último, a dilacerante dor de reviver

..........Tudo quanto haveis feito, e sido;: a vergonha

..........Dos motivos revelados tarde, e a consciência

Das coisas mal feitas e feitas para prejuízo dos outros

..........Que uma vez tomaste por exercício de virtude.

..........Então a aprovação dos tontos fere, e a honra mancha-se.

De erro em o exasperado espírito

..........Continua, a não ser restaurado pelo fogo refinado

..........Onde deves mover-te com medida, tal na dança.»

O dia estava a nascer. Na rua desfigurada

..........Ele deixou-me, com uma espécie de benção,

..........E desvaneceu-se ao som de uma trompa.

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III

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Há três condições que muitas vezes são parecidas

E contudo divergem completamente, florescem no mesmo buxo;

Ligação ao próprio e às coisas e às pessoas, separação

Do próprio e das coisas e das pessoas: e, crescendo entre eles, a indiferença

Que é parecida com os outros como a morte se parece com a vida,

Estando entre duas vidas, sem florir, entre

A urtiga viva e a morte. É esta a utilidade da memória:

Para a libertação - não menos do amor mas expendido

O amor está para além do desejo, e a sua libertação

Do futuro como do passado. Assim, o amor de um país

Começa como uma ligação e o nosso centro de acção

E chega a achar que a acção tem pouca importância

Embora nunca diferente. A história pode ser servidão

A história pode ser libertação. Repara, agora, como desaparecem,

Os rostos e os lugares, com o próprio que, se pudesse, os amava,

Para se renovar, transfigurado, noutro perdão.

O pecado é inelutável, mas

Tudo estará certo, e

Toda a espécie de coisas estará certa.

Se eu pensar, outra vez, neste lugar

E no povo, não inteiramente recomendável,

Sem imediato parentesco ou gentileza.

Mas um qualquer de génio peculiar,

Todos tocados por um comum génio

Unidos na luta que os dividiu;

Se eu me lembrar de um rei

De três homens, e de mais ainda, no patíbulo

E de alguns que morreram esquecidos

E de um que morreu cego e mudo

Por que razão deveríamos celebrar

Mais estes homens do que os moribundos?

Não é tocar o sino de trás para diante

Nem é encantamento

Evocar o espírito de uma rosa

Não podemos reviver velhas feições

Não podemos restaurar velhas políticas

Ou seguir um tambor antigo

Estes homens, e aqueles que os opuseram

E aqueles a quem eles se opuseram

Aceitaram a constituição do silêncio

E estão dobrados num só princípio

Seja o que for que herdámos dos desafortunados

Tomámos dos vencidos

O que eles tinham para nos deixar - um símbolo:

Um símbolo aperfeiçoado na morte

E tudo estará certo e

Toda a espécie de coisas estará certa

Pela purificação do motivo

No terreno da nossa súplica.

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IV

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A pomba a descer corta o ar

Como chama de terror incandescente

Da qual as línguas declararam

A única descarga do pecado e do erro.

A única esperança, ou então o desespero

..........Jaz na escolha de pira ou da pira

..........Ser redimido do fogo pelo fogo.

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Quem então concebeu o tormento? O amor

O amor é o Nome não familiar

Por trás das mãos que teceram

A camisa intolerável da chama

Que o poder humano não pode remover

..........Apenas vivemos, mal suspiramos

..........Consumidos pelo fogo ou pelo fogo.

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V

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O que chamamos o começo é muitas vezes o fim

E fazer um fim é fazer um começo.

O fim é donde começamos. E cada frase

E período que estão certos (onde cada palavra está em casa,

Tomando o seu lugar para suportar os outros,

A palavra nem difícil nem ostensiva,

Um comércio fácil do velho com o novo

A palavra comum exactamente sem vulgaridade,

A palavra formal precisa mas não pedante

Os consortes completos dançando juntos)

Cada frase e cada período são um fim e um começo,

Cada poema um epitáfio. E qualquer acção

É um passo para o cadafalso, para o fogo, pela garganta do mar abaixo

Ou para uma pedra ilegível: e é aí que começamos.

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Morremos com os moribundos:

Repara, eles vão-se embora, e nós vamos com eles.

Nascemos com os mortos:

Repara, eles regressam, e trazem-nos com eles.

O momento da rosa e o momento do teixo

São de igual duração. Um povo sem história

Não é redimido do tempo, pois a história é um padrão

De momentos sem tempo. Assim, enquanto falha a luz,

Numa tarde de Inverno, numa capela secular

A história é agora e na Inglaterra.

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Com a atracção deste Amor e a voz deste Chamamento

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Não deixaremos de explorar

E no fim do nosso explorar

Será começar onde começámos

E conhecer o lugar pela primeira vez

Através do desconhecido portão relembrado

Quando o último pedaço de terra descobrir

É aquele que foi o começo;

Na fonte do rio mais longo

A voz da queda-d'água escondida

E as crianças na macieira

Desconhecido, porque não cuidada

Mas ouvida, meio ouvida, na quietude

Entre duas ondas do mar.

Depressa, agora, aqui, agora sempre -

Uma condição de completa simplicidade

(Custando não menos que tudo)

E tudo estará certo e

Toda a espécie de coisas estarão certas

Quando as línguas da chama estão dobradas para dentro

Em direcção aos nós coroados do fogo

E o fogo e as rosas são só um.

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T. S. Eliot, Antologia Poética, Estudo prévio, selecção e tradução de José Palla e Carmo, Publicações Dom Quixote, Lisboa, 1988

terça-feira, 30 de março de 2010

a rosa e o teixo

"Pensar, na verdadeira acepção da palavra não passa de um processo artificial que ensinámos a nós próprios com alguma dificuldade. Preocupamo-nos com o que fizemos ontem, debatemos o que iremos fazer hoje e o que acontecerá amanhã. Mas ontem, hoje e amanhã existem à parte das nossas especulações. Aconteceram-nos e voltarão a acontecer-nos independentemente do que nós fizermos por isso."

Mary Westmacott (pseudónimo de Agatha Christie), Uma vida dois destinos, (The rose and the yew tree), Livros do Brasil, Lisboa, 1990, p. 42

O título deste livro cita Os Quatro Quartetos de T. S. Eliot:

"O momento da rosa e o momento do teixo

São de igual duração."

T. S. Eliot, Antologia Poética, Publicações D. Quixote, Lisboa, 1988, p. 154

segunda-feira, 29 de março de 2010

palavras e espírito

Gilgamesh, uma das mais antigas personagens literárias, terá sido um homem, um rei e até mesmo um tirano que o povo já não podia suportar. Uma vez que os registos escritos da epopeia de Gilgamesh são muito antigos pode acreditar-se que ele tenha vivido há cerca de cinco mil anos no Médio Oriente. Esta estátua está no Museu do Louvre, em Paris, mas trouxe a fotografia de um blog que vos convido a visitar: carregar aqui (o blog é em inglês).

"As palavras são um apoio para o espírito, indicando-lhe um caminho." escreveu Edith Stein que podem ler, em português, carregando aqui.

Isto porque o tempo não conta para o espírito e a literatura de todos os tempos, se pudermos traduzi-la para uma língua conhecida, nos fala sempre do que não sabemos.

domingo, 28 de março de 2010

sê tudo

Porque te julgas? Tudo te foi dado. Sê tudo o que podes ser e não apenas uma parte. Não te limites. Conhece o mais alto e o mais baixo, o melhor e o pior.

sexta-feira, 26 de março de 2010

medo do paraíso

Regras e revoltas são os carris por onde deslizamos sem esforço. Fora do caminho há uma vasta ignorância a que se chama nada. Se ouvires chamar não olhes, se vires alguma coisa não escutes, dirão que estás maluca e apertarão ainda mais as regras e as palas. É o medo do paraíso. O medo da morte. Junta-te à multidão e estarás em segurança, lá fora há o perigo de milagres. Sabemos criar infernos muito agradáveis, confortáveis, belos. A tua existência nem imaginas como será longa se permaneceres dentro das normas. Vê como é bom, tão bom, aqui connosco. Tão bom que não podemos permitir que ninguém escape, não vá dar-se o caso de nos vir depois contaminar com sabe-se lá que venenos lá de fora. Revolta-te cá dentro, está tudo previsto. Há drogas, há armas, há sexo, há barulho, que preferes? Neste grande parque de diversões tens direitos, reclama-os. Impõe-te. Quem sabe... podes vir a ser um dos grandes. Queres poder? Junta-te aos que lutam por um mundo melhor. Vem. Ou queres ser bela? Olha quanta maquilhagem aqui. Podes ser diferente todos os dias, cada vez mais jovem, mais sedutora. Há tudo aqui. Tudo para todos. Escolhe a tua carreira.

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Sim, tudo isto termina algures. Há fronteiras. Estão bem guardadas. Não, não podes sair. Porque quererias sair? Que imaginas que está para lá dos muros? Não, não há nada. E assim alguns que ainda conseguem vagabundear espreitam às vezes por quase invisíveis frinchas para o paraíso, esse paraíso tão temido. Espreitam escondidos, com medo de ser apanhados e vencidos e o que vêem calam. Outros voam em sonhos e escrevem poemas que são benignamente tolerados porque, enfim, desde que aqui permaneçam tudo o que julgam ter visto é apenas incrível. Fantasias, disparates, falta de realismo. O realismo está cá dentro. Chamem-lhe embora inferno sabemos que é real. Estamos cá, conhecemos tudo muito bem, sobretudo o centro das coisas. A marginalidade é isso mesmo: o pior do inferno. Vem para dentro. Para dentro.

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Metáforas, literatura, quanta quiseres. Embriaga-te, isso passa. Emboneca-te para seres respeitada. Come o que deves para seres saudável. Diz o que deves para chegar ao poder. Mantém-te firme e um dia tudo isto será teu, serão tuas as regras, poderás fazer o que quiseres se ao menos souberes manter-te dentro das normas. Não é nada difícil, difícil é sair delas, para que hás-de complicar a tua vida? Olha que bem que se está aqui, é o palácio. Mesmo que sejas a última das criadas não é muito melhor viver no palácio? Oh, sim. Há música e danças e nunca estás sozinha.

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Porque és teimosa? Porque não obedeces? Não sabes. Quem te dera ser amada! Tu tentas, tu esforças-te mas não vale de nada, nunca alcanças o paraíso, é sempre um inferno por mais que tentes. Destino? O que é isso? O destino és tu que o fazes. Olha a Maria, olha a Fernanda, olha a Isabel, olha a Lúcia, se fores como elas serás feliz. E tu olhas, imitas, queres, acreditas. Sim, a culpa é tua. Qual inferno? És masoquista?

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É melhor, portanto, que não te queixes. Fica calada, se ninguém suspeitar que vives no inferno o inferno é um pouco mais suportável para ti e para os outros. Talvez seja apenas isso. Talvez todos, todos se calem. Simples, não é? Não, porque quando te calas há ainda algo em ti que silenciosamente grita e incomoda toda a gente. Sempre e sobretudo os que te são mais próximos, os que amas.

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Farta de ser princesa resolveu antecipar um pouco os cinquenta anos e tornar-se rainha. Pronto. Senhora de si montou o pássaro sagrado e abandonou a cidade, o reino, o domínio privado onde sempre tinha vivido. Adeus. Como é vasta a liberdade. Não tem anos nem dias, nem tristezas nem folias. O pássaro sagrado sobrevoou desertos e pântanos, mares e montanhas, tudo era belo e estranho ao mesmo tempo, mas sobretudo imenso. Ilimitado. Dentro das penas não tinha frio nem calor, estava perfeitamente bem, tão bem que adormeceu.

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Ele era demasiado jovem, demasiado filho e irmão, demasiado querido para lhe pertencer. Não importa, basta desejar para ser feliz, concretizar um desejo é torná-lo duro. Suavemente os sonhos confortam, para que trazê-los para a realidade? Ele era, portanto, perfeito. Nessa beleza e perfeição ilimitada estava toda a alegria, toda a suave felicidade para que a levava a ave sagrada. Estavam já demasiado longe para que aquele pequeno tudo onde sempre vivera pudesse ser visível. Podia finalmente esquecer tudo, esse pequeno sonho cheio de medo. Adeus.

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Ah o sorriso, o sorriso dele, o olhar dele pousado nela quando sorria, ah... sim, há felicidade. Mesmo que tenhas medo, mesmo que fujas ou finjas, há paraíso. O sorriso dele, o olhar, o corpo, as mãos, a atenção e algo mais que se chama juventude e inocência. Tudo lhe pertencia a ele e nele ela encontrava tudo. Sentados no mesmo banco de jardim com todo o horizonte em frente numa manhã roubada ao tempo. Eis, bem vês, o paraíso. Nenhum perigo, êxtase.

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Quando chegou ao céu procurou um abrigo. Ele riu-se. De que há que abrigares-te? Tudo aqui é felicidade. Ela também se riu. Não há nada a temer, nenhuma palavra fere, nenhum olhar acusa, nenhuma acção te recusa. Estás no reino dos teus desejos e és a rainha. É difícil acreditar? Não, não é difícil, pelo contrário, é tão fácil que... ela riu-se, parece mentira.

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Se eu voltasse... Se tu voltasses? Se eu voltasse... bem, isto teria sido uma ilusão... não é? Não. Tens vivido uma ilusão que te matou. Não há regresso. É o paraíso ou... Ou? Ou o que tu quiseres. Ele ficou triste. Oh não, não, não! Não fiques triste, não! Quero ser feliz contigo. Quero, quero, quero! Como poderia querer outra coisa?

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Sim, como poderia querer outra coisa que ser abençoada por ele? Como poderia querer outra coisa que ouvi-lo cantar-lhe aos ouvidos como era bela e como era amável e como era deliciosa e como era gentil e como, oh como, o fazia feliz! Desmaiar-lhe nos braços e acordar nos seus braços e vê-lo sorrir-lhe! Oh, era inacreditável, demasiado, demasiado bom para ser verdade... tenho medo... oh! Assim que na sua alma se insinuava, por pequena que fosse, a dor, logo ele sofria... Não meu amor... Não! Oh, era preciso beijá-lo, beijá-lo muito, desculpa, não peças desculpa, beijá-lo para que ambos fossem outra vez felizes.

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Tu, só tu, meu belo e jovem amor, tu, só tu, minha bela e jovem amada... para onde fora toda a idade, toda a recordação, toda a amargura? Procurá-la-ia em vão, ainda que tivesse vontade de procurar... Riu-se, oh, meu bem amado, encosta a tua cabeça no meu peito, deixa-me abraçar-te. Tu és, eu vivo do teu sorriso, da tua alegria. Como podes? Como podes amar-me? Porque não poderia!? Bem...

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Não digas nada. Que importa agora aquilo de que nem te lembras? Oh, sim... Vejamos, há por aqui muitos motivos de alegria. Banharmo-nos toda a manhã, brincar com as crianças, vaguear com a lua em noites cálidas, subir às árvores. Sim, tudo isso é belo mas muito mais belo é desmaiar nos teus braços, no teu sorriso, na tua doce, doce companhia. Porque foi que não estiveste sempre comigo? Oh, porque invoco sombras sobre o teu rosto? Desculpa, desculpa, não peças desculpa! Estive sempre contigo mas não querias ver-me... Eu? Não queria? Não... não querias. Agora não te lembras, como então não te lembravas. Abraço-te com tanta força, meu belo amigo, como, como foi que te esqueci? Porquê? Não, não acredito, não pode ter sido assim. Basta uma palavra tua e tudo é alegria, tudo é felicidade, como poderia esquecer-te?

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Oh, é uma estranha cidade aquela onde viveste. Ah, sim... é. Foi. Era. Porque é que fui para lá? Se eu soubera... Não, não enrugues a tua fronte, não penses nisso. Estou aqui agora, estás aqui agora. Sabes, sorriso, oh, o teu sorriso! Nunca estivemos separados. Não? Não, eu estive sempre contigo. Oh! Como respirarias se te não desse alento? Oh, meu amigo! Oh, minha amada! Tu és tão bonito! E tu és-me tão cara!

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Pensar que não acreditava!

quinta-feira, 25 de março de 2010

feze-s'el en seus cantares morrer

Poesia Trovadoresca

Cantigas de Escárnio e Maldizer

"Roi Queimado morreu con amor

en seus cantares, par Sancta Maria,

por Da dona que gran ben queria:

e, por se meter por mais trobador,

porque lhe ela non quis ben fazer,

feze-s'el en seus cantares morrer,

mais resurgiu depois ao tercer dia!"

Pero Garcia Burgalês

quarta-feira, 24 de março de 2010

quem me dera não ter razão

Razão, de que me serve o teu socorro?

Mandas-me não amar, eu ardo, eu amo;

Dizes-me que sossegue, eu peno, eu morro.

Bocage (1823-1907)

terça-feira, 23 de março de 2010

voz que se cala

"Amo as pedras, os astros e o luar

Que beija as ervas do atalho escuro,

Amo as águas de anil e o doce olhar

Dos animais divinamente puro.

(...)

Amo todos os sonhos que se calam

De corações que sentem e não falam,

Tudo o que é Infinito e pequenino!

(...)"

Florbela Espanca

segunda-feira, 22 de março de 2010

Mirabai

"Ajoelho-me perante ti Bihari

A tua coroa é de penas de pavão

E o tilak brilha na tua fronte

Ondulam os pendentes de oiro nas tuas orelhas

E os negros anéis dos teus cabelos.

Quando tocas flauta

Deixas desassossegado o coração

Das mulheres de Braj

Ao contemplar-te Mira desfalece"

Mirabai

sábado, 20 de março de 2010

esquecimento

esqueci-me como é que se existe para os outros, o mundo está tão distante... há um calor interno que me sustenta e sonhos que se diluem ou materializam e passam... e há mais qualquer coisa longínqua, muito longínqua, que me diz incompreensivelmente que há noite e dia...

não, não é um relógio, é uma janela... :)

sexta-feira, 19 de março de 2010

a alma e o mundo

a mente é uma flor

de primavera,

veio devagarinho

desde a semente,

das raízes,

caules,

folhas,

da própria terra,

veio silenciosamente,

veio invisível

e invisível continua,

por mais que se lhe chame flor

ou cérebro

a mente,

a psique,

a alma,

não é coisa,

não tem forma nem limites,

é amor.

tão frágil

o amor,

tão frágil

a mente...

basta um vento

para sofrer enormemente,

universalmente...

e basta uma brisa para desabrochar,

sorrir,

abraçar,

embalar o mundo...

ah, o mundo...

a dureza,

a crueldade brutal

das palavras

e dos actos

que ferem a alma

que a negam

que a ignoram

que a desfazem em mil pedaços

invisivelmente...

e no entanto somos almas

mentes

psiques

amor

e o amor não morre

mesmo quando a mente se perde

ou é presa

afastada

desprezada

amesquinhada

amachucada...

não, o amor não intimida

não exige

não se impõe

não ganha.

gera

cria

ampara

espera

quinta-feira, 18 de março de 2010

cariátide

a cariátide suporta

de pé

impávida e serena

suporta o peso

como se nada fosse

assim se suporta o desprezo

a hostilidade

o ódio

como se nada fosse

assim se suporta a tempestade

a tormenta

pelos séculos dos séculos

para sempre

se necessário for

sorrindo

fingindo que se é de pedra

mesmo sentindo demasiadamente

ou até já nem sentindo

nada

porquê?

que pergunta!

porque sem a cariátide o edifício desaba

quarta-feira, 17 de março de 2010

terça-feira, 16 de março de 2010

bênçãos

se não lêssemos nos livros que as crianças pediam frequentemente a bênção aos adultos e estes as abençoavam já não saberíamos que podemos abençoar-nos uns aos outros...

as bênçãos fazem-nos tanta falta!

deixo-vos aqui a minha bênção e desejo que abençoeis também

espalhemos bênçãos...

frequentemente, sem limites, em silêncio... ;)

(ilustração de Roque Gameiro)

segunda-feira, 15 de março de 2010

adivinha-me

A oscilar

a oscilar

entre o desejo e a frustração

querer e temer

sim ou talvez não

a oscilar

a oscilar

oh, dá-me a mão...

leva-me daqui...

diz-me que tomarás conta de mim...

que não me hás-de censurar

nem exigir

diz-me que posso confiar

que me posso abrir

diz-me que não serás como toda a gente

e que seja tudo verdade, tudo verdade

o que me disseres

que não me mintas

não me enganes

nem por medo, nem por piedade...

mas oh, quem

quem poderás tu ser?

Quem?

Se não sou digna

se não mereço

que ninguém me ame assim...

oh, diz-me, diz-me...

que não importa que seja parva, estúpida, feia, velha...

diz-me que não importa que me engane, que me esqueça...

que me cale, que emudeça...

que chore...

diz-me, diz-me

quando te aprouver...

não porque te peça.

Adivinha-me, adivinha-me

e não me esqueças...

deixa-me ser teimosa e muda

deixa que nunca te diga o que realmente quero.

Nunca, nunca te diga: diz-me que me amas.

sexta-feira, 5 de março de 2010

a imortalidade dos sonhos

"Serão os sonhos que sobreviverão porque um sonho é imortal."

Marin Zimmer Bradley, "A Senhora de Avalon", p. 481, Rocco-Temas e Debates, Lisboa, 2002

quinta-feira, 4 de março de 2010

vícios e virtudes geométricas

o que é mau nunca acaba porque faz parte de um ciclo vicioso e temos que acabar com ele

o que é bom é recto e está em vias de extinção se não for preservado

o ciclo que se mantém e a recta que desaparece ressoam em todos os níveis do pensamento

pensamos na vida como segmento de recta com princípio e fim

no entanto aprendemos que as rectas não têm princípio nem fim: há dois infinitos que infinitamente se afastam

abstracção pura

a pureza é virtude

mas a ideia de recta, por mais pura e virtuosa que seja, é extensão imaginária de linhas com princípio e fim

ora os princípios e os fins são grandes problemas filosóficos com os quais o pensamento se debate...

em ciclos

concordo que é difícil acompanhar este raciocínio

também sinto dificuldades em me fazer entender

chamar vicioso ao ciclo é, em si mesmo, encerrar o pensamento em pecado

considerar que o recto é virtuoso é também impossibilitar a compreensão

as espirais são modelos de compromisso que permitem manter a evolução e os ciclos naturais, evitando a repetição

o tal vício do ciclo

sim, o dia e a noite sucedem-se mas não exactamente iguais

queremos que o amanhã seja mais evoluído que o ontem

hoje cremos que o passado foi uma evolução que vai continuar no futuro

não cremos no retorno

não queremos o retorno

queremos mesmo acabar de vez com os males e não permitir que os bens desapareçam

mas porque, então, não se extinguem os males e não fazem os bens ciclos virtuosos?

porque é que o bom é raro e o mau abundante?

ou será que detestamos o que é abundante e amamos o que é raro?

mas se não há rectas

se os segmentos de recta são segmentos de círculos tão vastos que não nos apercebemos da curvatura

se tudo regressa

ao que foi

se a vida é a parte emergente de um círculo que não contemplamos na totalidade

se a virtude for também cíclica

e o vício uma recta imaginária

talvez o sentido esteja sempre presente

e o absurdo seja... absurdo

a geometria da liberdade não se aprende nas escolas

quarta-feira, 3 de março de 2010

acessíveis apenas por internet

Sabe onde ficam as Ilhas Chagos?

Os habitantes foram todos evacuados, no final dos anos 60 do século passado, e até agora não conseguiram voltar.

A não ser que uma pessoa pertença às Forças Armadas do Reino Unido ou dos EUA e seja enviada para lá, o único acesso é a internet.

terça-feira, 2 de março de 2010

distorcer o transcendente

"Foi Taliesin, talvez, quem mais se aproximou da verdade quando relatou à grã-sacerdotisa o que tinha acontecido, porque era suficientemente sensato e sábio para saber que as palavras humanas apenas conseguiam distorcer a realidade, quando algo de transcendente acontecia no mundo."

Marion Zimmer Bradley, "A Senhora de Avalon", p. 386, Rocco-Temas e Debates, Lisboa, 2002